terça-feira, 22 de março de 2022

LUANDA ENQUANTO LUGAR DE MEMORIA


Luanda, a capital da colónia portuguesa de Angola, era uma cidade de maioria feminina em meados do século XIX.
A população feminina era composta de donas, negras livres e escravas que ocupavam espaços diferenciados nessa sociedade colonial. As filhas da elite luso-africana eram desde a infância reconhecidas como donas, refletindo o seu status social e económico. Ao longo da vida, elas acumulavam escravos, terras e objectos de luxo através de heranças e da participação no comércio local e de longa distância como mercadoras e intermediárias entre comerciantes estrangeiros e fornecedores africanos.
As negras livres buscavam oportunidades no comércio ambulante como quitandeiras e oferecendo serviços aos habitantes da cidade. Escravas, por sua vez, também adentravam o pequeno comércio das ruas e mercados e desempenhavam actividades domésticas nas residências de estrangeiros e luso-africanos.
Este estudo baseia-se em registros de escravos, baptismos, óbitos e escrituras de compra e venda para explorar experiências de donas, negras livres e escravas na Luanda de oitocentos. Numa sociedade luso-africana e escravocrata, elementos como descendência portuguesa, posse de bens e adesão à cultura lusa conferiam prestígio e determinavam as trajectórias pessoais de mulheres livres e escravizadas.
Dona Josefa Jacinta de Sousa e Silva, Maria Diogo e Eufrásia viveram em Luanda em meados do século XIX. Todavia, elas tiveram experiências de vida distintas, marcadas pela condição social e económica. Dona Josefa era proprietária de terras, gado e escravos; Maria Diogo era uma negra libre, vendedora ambulante; enquanto Eufrásia era escrava. Descendência luso-africana, posse de bens e filiação à cultura portuguesa eram alguns dos elementos que distinguiam essas três mulheres e, consequentemente, as suas trajectórias de vida.
Este artigo explora experiências de donas, negras livres e escravas, enfatizando as possibilidades e limites impostos a estas mulheres na Luanda de meados do século XIX.

Aproximadamente 12.500 milhões de africanos cruzaram o Oceano Atlântico durante a era do tráfico para suprir a necessidade de mão de obra nas Américas. Cerca de 45 por cento partiram da África Centro-Ocidental, principalmente da região correspondente a Angola e ao Reino do Congo. Luanda, a capital da colónia portuguesa de Angola, ocupou a posição de porto mais importante do tráfico transatlântico de escravos até meados do século XIX, quando Portugal proibiu a exportação de cativos a partir dos seus territórios africanos. Cerca de 1.500.000 cativos foram transportados a partir do seu porto entre o século XVI e meados da década de 1840.
Em 1802, a população de Luanda era de 6.925 habitantes, 3.785 do sexo masculino e 3.140 do sexo feminino. Devido a intensa demanda brasileira por cativos, a cidade passou por um declínio demográfico durante a primeira metade de oitocentos; em 1830 o número de habitantes havia caído para somente 4.307.
Apesar do tráfico ter sido banido em 1836, carregamentos de escravos continuaram a partir da capital angolana até meados da década seguinte. Foi somente com a presença de patrulhas britânicas na costa da África Centro-Ocidental é que os traficantes deixaram Luanda em busca de portos mais discretos no sul e norte da colónia, de onde continuaram a exportar escravos para o Brasil e Cuba.

Com o fim do tráfico, Luanda passou por uma “explosão demográfica” alcançando 12.565 habitantes em 1850, a maioria africanos escravizados, que já não podiam ser vendidos para as Américas.
Os agentes portugueses classificavam a população de Luanda em três grupos: 1.240 brancos, 2.055 mestiços e 9.270 negros. Como outras cidades na costa atlântica da África, as mulheres representavam a maioria da população.
Em 1850 elas eram 7.140 ou 57 por cento dos residentes, das quais somente 420 eram brancas. 6.020 indivíduos viviam sob o jugo da escravidão, dos quais 63.5 por cento eram do sexo feminino. 
Os brancos eram maioritariamente de origem portuguesa, quer provenientes da metrópole, das ilhas atlânticas ou do Brasil. Em Angola, eles ocupavam posições na administração e nas milícias e muitos acabavam por envolver-se no comércio de escravos, apesar da existência de leis que proibiam a participação de oficiais e militares no comércio local. Outros, porém, eram comerciantes atraídos pelas promessas de sucesso económico através do tráfico de escravos e, após 1836, de produtos tropicais como marfim e cera.
Havia ainda os degredados de origem portuguesa, brasileira e italiana que cumpriam penas temporárias ou perpétuas em Angola. Alguns prosperaram na colónia, onde estabeleceram família e tornaram-se comerciantes de sucesso.
A imigração branca (forçada ou voluntária) era maioritariamente masculina. Como cidade portuária, Luanda recebia ainda tripulações de navios que se estabeleciam na cidade temporariamente, contribuindo assim para aumentar o desequilíbrio entre o número de homens e mulheres no interior da população branca.
A população africana era a mais numerosa e diversa, composta de pessoas livres e escravizadas que trabalhavam nas oficinas de artesãos, faziam serviços domésticos nos sobrados e cultivavam alimentos nas propriedades agrícolas dos subúrbios rurais. Embora a maioria fosse de origem Mbundu, os nativos que chegavam a cidade tinham origem variada. Alguns eram naturais de áreas próximas à costa, enquanto outros vinham do interior e até mesmo de regiões distantes como o Reino do Congo. Durante a era do tráfico, um grande contingente de nativos aguardava nos quintais lotados até serem embarcados em navios negreiros com destino às Américas.
A população parda ou mestiça, por sua vez, resultava das uniões entre homens estrangeiros e mulheres locais (livres e escravas). Devido ao reduzido número de mulheres brancas na colónia, relações íntimas entre estrangeiros e mulheres locais, tornaram-se comuns.
Na década de 1850, o português Francisco Travassos Valdez notou que “em consequência da escassez de mulheres brancas, os portugueses formam alianças com mulheres de cor, manifestando grande afeição pelos filhos nascidos dessas relações”. As uniões entre estrangeiros e as filhas da elite luso-africana eram geralmente celebradas na Igreja Católica.
Mas, homens brancos também se relacionavam com pretas livres e escravizadas. Embora muitas dessas uniões fossem temporárias, algumas eram de longo prazo. As uniões informais eram de facto mais comuns em Luanda, independente da cor e status social dos envolvidos. Enquanto os filhos nascidos de pais casados na Igreja eram reconhecidos como legítimos, os demais eram classificados como naturais.
Os filhos e filhas que resultavam das relações entre homens imigrantes e mulheres locais eram classificados como portugueses, independentemente da cor da pele.
Eles eram baptizados, casados e sepultados na Igreja Católica, falavam português e kimbundu e gravitavam entre a cultura portuguesa e Mbundu.
Os filhos da elite luso-africana ocupavam postos administrativos e militares ou seguiam a carreira dos pais no comércio. Algumas famílias enviavam os seus filhos para serem educados no Brasil ou Portugal. Eduardo Matoso Gago da Câmara, por exemplo, formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. Eduardo era um dos herdeiros da família Matoso de Andrade e Câmara, cujas origens em Angola remetiam aos inícios do século XVIII. Os homens da família ocuparam cargos nas milícias e enriqueceram através do tráfico de escravos. Inocêncio Matoso da Câmara e José Maria Matoso da Câmara, respectivamente pai e irmão de Eduardo, eram ambos conhecidos traficantes de escravos. José Maria fazia parte do grupo de comerciantes que enviou carregamentos de escravos ilegalmente para o Brasil após a extinção do tráfico em 1836. Em 1847, José Maria e o seu sócio, o português Augusto Guedes Coutinho Garrido, foram acusados de participação no tráfico ilegal quando um dos seus navios foi capturado em Cabo Frio, na capitania do Rio de Janeiro, após desembarcar um carregamento de escravos
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As filhas da elite luandense, por sua vez, eram educadas por tutoras nas artes de costurar, bordar e tocar piano; algumas aprenderam inclusive a ler e escrever.
Elas eram preparadas para casar com “homens de bem”, preferencialmente comerciantes e oficiais de origem portuguesa. Desde a infância, estas mulheres eram referenciadas como donas, título que reflectia status socioeconómico e filiação à cultura portuguesa.
Ao longo da vida, elas acumulavam terras, escravos, prédios urbanos, objectos de luxo e embarcações por meio do seu trabalho e de heranças deixadas por pais e esposos estrangeiros.
Muitas tornaram-se comerciantes, abastecendo mercados urbanos com alimentos produzidos nos seus arimos (propriedades agrícolas). Dona Josefa Jacinta de Sousa e Silva era filha de Dona Maria Ferreira de Lemos e do Coronel Francisco José de Souza Lopes, que tinha como principal negócio a criação de gado para abastecer o mercado de Luanda. Dona Josefa foi casada em primeiras núpcias com o português António José de Sousa e Silva. Em 1858, já órfã de pai e viúva, ela possuía um sobrado na cidade, quatro arimos no interior, três musseques (quintas) no subúrbio rural do Alto das Cruzes, vários móveis de madeira, joias, escravos, dois navios, quatrocentas cabeças de gado e débitos activos. Parte do seu numeroso património era proveniente das heranças deixadas pelo pai e por seu marido. Todavia, Dona Josefa conseguiu aumentar seu património através da sua participação no comércio de gado e de alimentos.
Como resultado do prestígio socio económico de suas famílias, as donas eram geralmente classificadas em registros oficiais como brancas ou pardas, independentemente da cor da pele (a posse de bens embranquecia).
Dona Ana Joaquina dos Santos Silva, por exemplo, era filha do militar português Joaquim de Santa Ana Nobre dos Santos e Dona Teresa de Jesus, nascida em Luanda. Apesar de ser luso-africana, a administração portuguesa comumente classificava Dona Ana Joaquina como branca. Um documento produzido pela secretaria de governo em setembro de 1849, descrevia Dona Ana Joaquina (acima foto actual de seu palacete) como “uma mulher de 60 anos, natural de Luanda, de cabelo grisalho, sobre olhos pretos, nariz e boca regular e cor branca”. Como descrito por vários historiadores, Luanda era uma sociedade fluida na qual dinheiro, não biologia, determinava a cor dos residentes.
Apesar do casamento com imigrantes ter sido um factor importante para definir mulheres de gerações precedentes como donas, em meados do século XIX, a descendência portuguesa, bem como a posse de bens e a adesão à cultura portuguesa haviam se tornado mais relevantes.
De facto, mulheres solteiras eram referenciadas como donas – embora existisse a possibilidade de que as mesmas fossem casadas através de uniões informais conhecidas como amasiamento, que não eram legitimadas pelo estado português.
Em 1865, Dona Josefa Aurélia de Oliveira, maior de idade , apesar de ser solteira, era reconhecida como dona. Porém, ela era proprietária de escravos e do arimo Fonseca, na Barra do Bengo, ao norte de Luanda.
Dona Tereza Alves Andrade, natural de Luanda, morreu solteira aos 70 anos de idade. Todavia, ela tinha descendência luso-africana, sendo filha do Coronel português Pedro Alves de Andrade e de Ana Maria, natural de Luanda. Dona Tereza foi sepultada na Igreja da Ordem Terceira, o que evidencia que ela era uma mulher de posses.


Algumas donas acumularam capital suficiente para adentrar o competitivo tráfico de escravos.
Dona Ana Joaquina dos Santos Silva estava entre os comerciantes mais importantes da capital angolana. Ela possuía arimos onde escravos produziam farinha de mandioca, feijão e milho para subsistência e para abastecer o mercado de Luanda. Além disso, Dona Ana Joaquina exportava escravos para o Brasil. Em 1827, seu navio Boa União cruzou o Atlântico com 449 escravos desembarcados em Pernambuco. Mesmo após a abolição do tráfico em 1836, Dona Ana Joaquina continuou a exportar escravos ilegalmente. Em 1846, o navio Maria Segunda, de sua propriedade, fez duas viagens para a Bahia, com um total de 980 escravos.
Paralelamente ao tráfico ilegal, a “rainha do Bengo”, como ela era conhecida, investiu em engenhos de açúcar e no comércio de produtos tropicais como marfim e cera. No início da década de 1850, seus engenhos produziam açúcar e aguardente, ambos utilizados como crédito para a aquisição de produtos tropicais no sertão.

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