No tempo do primeiro Kaparandanda, talvez há cem mil anos atrás, quarenta quilómetros acima da foz do rio Quanza, e na sua margem norte, existia uma pirâmide de burgau, que conheci, há mais de meio século quando ainda mostrava alguns traços da sua provável aparência original.
Só no Egipto, e muito recentemente, foi descoberta uma pirâmide semelhante, que espanta cientistas de todo o Mundo, por se tratar de uma construção feita por seres inteligentes, muitas dezenas de milhares de anos antes das actuais construções de Gizé.
A pirâmide do Quanza continua no entanto a ser vandalizada pelos patos bravos de Luanda, que no saque ao burgau, a descaracterizam dia a dia.
Chamavam-lhe, os antigos, "Nzabala", que significa Aura (um elemento etéreo que envolve seres ou objectos) passando mais tarde a chamar-se "Sitio do Sambel", depois Morro do Roque , e finalmente "Morro da Zambela".
A seus pés e em direcção ao mar estende-se o místico território do Tombo, único lugar do Mundo em que fácilmente se encontra o dendém de três olhos, pai e mãe de todas as mandingas.
Contaram-me os mais velhos, que um mágico Khoisan, monotaísta desde sempre, plantara uma Essandeira no alto da pirâmide, e sentado debaixo dela invocou o Espírito, através do seu colar de dendéns.
Levantou-se de imediato na barra do Quanza um vendaval em que um redemoinho criou uma enorme nuvem de areia, que tapando o Sol se dirigiu para Norte.
A núvem no seu desenfreado voo, foi-se deixando partir, e caindo ao mar deu forma ao Mossulo, um pouco mais á frente à Chicala, e por fim como se de uma ave se tratasse pousou lânguidamente em frente a uma enseada que se viria a chamar Loanda.
Parecia uma passadeira que se desenrolava e estendia dando as boas vindas ao futuro:
- Primeiro aos Bantus, logo chegados do Sul da Ásia e que em acentuado declínio civilizacional encontravam no Zimbo o possível renascer do seu passado glorioso. O mesmo búzio que anos mais tarde, perante a oportunidade perdida se transformaria em petróleo.
- Depois, aos Portugueses sempre em viagem, que aqui encontraram, a um metro de profundidade água salobra, e infindáveis quantidades de cascas de mabangas de que retiravam a cal indispensável à construção das Igrejas.
E tudo isto numa ilha entretanto habitada por meia dúzia de Muxiluandos que lhe davam o nome de "Ndele Kisuko" que em Português quer dizer :
- "A Garça da Ilha do rio".
Helena ouvira contar tudo isto ao preto velho da ilha, de cabeça toda branca.
"Que idade terá este homem que conta tantas histórias e tem resposta para tudo" pensou em voz alta.
"Noventa" respondeu Palmira, e para desfazer qualquer dúvida sentenciou:
- " Quando a cabeça pinta, três vezes trinta!"
Mas foi preciso subir à cidade alta para ver a dança da Ndele:
- A Garça estendia as suas asas brancas uma para Norte outra para Sul num espreguiçar de elogio à preguiça.
Quando a corrente de Benguela mais esfriava, a deusa Kalema aproximava-se da costa, para se aquecer, e as ondas de tempestade empurravam as asas para mais perto de Luanda. Quando chegava o calor, a Kalema voltava para o meio do mar e as asas acompanhavam-na afastando-se. Só o seu corpo, onde as asas se articulavam, se mantinha imóvel, protegendo no coração a Igreja que o Manicongo mandara construir e em que em seu lugar se encontra hoje a Igreja do Cabo.
Em 1909, alguém colocou umas estacas com um passadiço de tábuas, facilitando o acesso á ilha que antes se fazia de dongo, o que em nada interferiu no bailado da Garça. Mas, por volta de 1930, quando se procedeu ao aterro para construção do porto de Luanda, foi cometido o crime de criar a baía, ligando a ilha ao continente.
Em 1909, alguém colocou umas estacas com um passadiço de tábuas, facilitando o acesso á ilha que antes se fazia de dongo, o que em nada interferiu no bailado da Garça. Mas, por volta de 1930, quando se procedeu ao aterro para construção do porto de Luanda, foi cometido o crime de criar a baía, ligando a ilha ao continente.
Uma ponte maciça passou a ligar a ilha à base do morro da fortaleza, impedindo a circulação das águas por baixo e passando a funcionar como grilheta esclavagista nas pernas da Ndele, agora condenada ao imobilismo.
Criada a Baía, de imediato foram-se embora as garoupas e os pargos mulatos, ficando só a ralé, como as matonas e alguns roncadores pouco exigentes, conformados em se alimentar dos esgotos da cidade, indiferentes ao padrão de comportamento que afirmavam.
Não se resignou no entanto a ave do Céu, e as suas asas, no esforço de voar, partiram-se primeiro na ponta sul e depois a norte nas palmeirinhas. Reagiu o algoz, espetando-lhe umas estacas na praia do Restinga e logo a seguir imobilizando-lhe totalmente os movimentos com extorsionários pontões de pedra.
Há poucos dias atrás sobrevoei a ilha aprisionada.
Não conheço melhor alegoria da escravatura!
A Ndele graciosa, livre, que dançava envolta em rendas brancas de espuma, tem hoje, acorrentada, a forma de um sengue. A sua coluna vertebral tem hoje um nome:
- Mutala Mohamed!
Este nome não é um pseudónimo de Alfredo Trony, o tal que deu vulto ao Kimbundo escrito. Nem de Alves da Cunha que confundia brancos com pretos só conseguindo ver almas transparentes. Não é de José Luciano Meireles nem de António Jacinto, de quem estou sempre tão próximo, e que testemunho serem uma encarnação da Ndele. Não é o da Guinhas Vieira Dias, quase Santa, de mãos abençoadas, que na sua casa em Luanda dava almoço diário a centenas de afilhados, que provávelmente ali comiam a única refeição do dia. Não é muito menos o de nenhum padre Franciscano, que em 1495, ao levantar a Cruz de Cristo baptizando os escravos reconhecendo-lhes o Espírito, rebentou com o edíficio de falsa moral que legitimava a exploração de seres sem Alma. Isto sim o verdadeiro fim da escravatura:
- O flagelo trazido pelos Árabes no século VIII para esta sofrida costa de África.
Os ingleses da Cadbury só pensavam no interesse económico e o próprio Sá da Bandeira limitou-se a ratificar o que há 350 anos este Sacramento do Baptismo havia imposto:
O homem completo e liberto.
- Mutala Mohammed é de facto o nome da maior avenida de Luanda, e faz lembrar os setecentos anos em que os Mussulmanos apareciam sem convite.
Vem a propósito sublinhar o modo como nós, os que falamos Português, valorizamos datas, enaltecemos nomes ou glorificamos factos:
- De Almirante Reis renomeámos a antiga avenida Dona Amélia: - Um Almirante republicano que se suicidou em 5 de Outubro de 1910, ciente que a monarquia ganhara a revolução.
A distinção parece ser de agradecimento ao facto de se ter morto e enganado.
- E que outros se lembrariam, em dar a um aeroporto do Norte o nome de um senhor que morreu num desastre aéreo?
Quem não sente um calafrio, quando hirto, ao amarrar-se à cadeira do avião que levanta voo no Porto ouve a hospedeira relembrar o nome do infeliz sinistrado?
Uma das razões de tudo isto foi-me dada por o velho Amigo Luandense, Nicola Beraldineli, descendente de degradados Napolitanos chegados a Luanda há três seculos por decreto de D. João V.
(Até aparecer o Balotelli era o Italiano mais feio que conheci.)
Um dia, depois de umas cervejas perguntei:
- "Ouve lá porque é que vocês são tão ladrões?"
Resposta pronta:
- "Aprendemos com o paizinho!"
Kangundo mundele, Kangundo mumbúndo!
(Branco matumbo, Preto matumbo)
(do livro Apontamentos do João) em Luanda do Antigamente
Sem comentários:
Enviar um comentário