terça-feira, 30 de março de 2021

S. PEDRO DE MOEL - Lenda do Penedo da Saudade


Geralmente, quando se fala no Penedo da Saudade, a nossa imaginação transporta-nos imediatamente ao cenário romântico de Coimbra dos estudantes e das tricanas!...
Mas a verdade é que existe outro Penedo da Saudade, talvez ainda mais romântico que o das badaladas coimbrãs.
Fica situado na costa maravilhosa de S. Pedro de Moel, entre esta praia e a praia da Concha. É dele, desse Penedo da Saudade de S. Pedro de Moel, que vamos contar a dramática lenda.
Foi no ano de 1641. No seu palácio, os duques de Caminha conversavam como dois enamorados que ainda eram. D. Miguel Luís de Meneses retinha entre as suas as mãos da esposa muito amada e dizia-lhe:
— Juliana! Quanto agradeço a Deus ter conquistado o vosso amor!
Ela sorria-lhe enleada.
— Miguel! Desde que vos vi prometi a mim própria pertencer-vos para sempre… ou não casar!
— Somos tão felizes!
— Tanto que chego a amedrontar-me!
Ele fez-lhe uma carícia no rosto.
— Porque vos amedrontais? Gozamos de perfeita saúde e, à nossa volta, as coisas parecem mais serenas…
— É certo. No entanto, há três noites que tenho sonhos estranhos e acordo a chorar.
Ele beijou-a.
— Juliana! Continuas a ser uma criança!
Nesse momento um criado bateu discretamente na porta entreaberta. D. Miguel de Meneses indagou:
— Que há?
Numa vénia respeitosa, o criado respondeu:
— Senhor! Acaba de chegar o senhor marquês de Vila Real, vosso mui digno pai.
Juliana levantou-se e fez-se pálida. D. Miguel segurou-lhe uma das mãos, a suplicar-lhe calma, enquanto dizia para o criado:
— Pedir-lhe-eis o obséquio de entrar para aqui.
O criado não saiu logo a cumprir a ordem. Parecia hesitante. O duque tornou:
— Dizei ao senhor marquês que o desejamos receber aqui mesmo.
Um tanto atrapalhado, o criado retorquiu:
— Senhor duque! Recomendou-me o senhor marquês que desejava falar-vos a sós...
— Mas… está aqui apenas a senhora duquesa...
— O senhor marquês disse que desejava falar ao senhor duque... mas não na presença da senhora duquesa.
D. Juliana, mais pálida ainda, ia retirar-se, mas D. Miguel sujeitou-a por uma das mãos.
— Ficai, Juliana! E vós ide dizer ao senhor marquês de Vila Real que a minha esposa é também a minha confidente mais fiel.
O criado retirou-se. D. Juliana olhou o marido, suplicante.
— Meu querido Miguel, bem sabeis como o marquês é orgulhoso! E só um caso muito grave o faria vir até aos nossos domínios.
O duque concordou:
— Sim... deve ser um caso muito grave, por isso mesmo deveis estar presente. Não tenho segredos para vós!
Nesse mesmo momento o marquês de Vila Real entrou no aposento. Vinha com um aspecto grave. Cumprimentou cerimoniosamente a nora e declarou, solene:
— Afinal… concordei em que estivessem juntos para me escutarem! Assim poupais-me uma espera perigosa, pois decerto meu filho poderá resolver imediatamente o assunto que venho tratar... sem ter de falar primeiro convosco, senhora minha nora!
D. Juliana, quase a tremer, perguntou:
— Senhor, que pretendeis dizer?
— O que disse, e vós bem o compreendestes! Todos sabem que desde que o meu filho vos tomou por esposa... deixou de ter vontade própria.
D. Miguel interveio:
— Ó meu pai! Penso que...
O marquês interrompeu o filho:
— Deixemos por agora esse assunto íntimo. A missão que me trouxe é muito mais grave. D. Juliana vai ouvi-la. Mas espero que se abstenha de dar a sua opinião!
— Falai, meu pai!
O marquês tomou um ar presunçoso.
— Senhor duque de Caminha e meu filho! Ficai sabendo que el-rei D. João IV irá pagar em breve a sua tirania!
D. Juliana encostou-se a um móvel para esconder a sua emoção. D. Miguel indagou:
— Que dizeis, senhor meu pai?
— Digo que a hora da vingança vem já próxima! Está organizada a conspiração que o há-de perder! E dessa conspiração fazem parte o arcebispo-primaz, seu pai, o conde de Armamar, D. Agostinho Manuel de Vasconcelos, eu próprio e... vós, meu filho!
D. Miguel retorquiu, surpreendido:
— Eu? Mas não fui consultado nem farei parte de tal conjura!
D. Juliana agarrou o braço do marido. Proferiu com voz trémula:
— Miguel... meu amor... ainda bem que assim pensais!
Autoritário, esquecendo até a sua condição de fidalgo, o marquês ordenou, colérico:
— Calai-vos, senhora! Este assunto não é para mulheres!
D. Miguel sentiu também a perturbação do momento.
— Nem para homens de sã razão!
— Que dizeis?
— Que considero loucura o que ides fazer!
— Porquê?
— Quereis que a nossa pátria perca de novo a independência?
O marquês gritou:
— Assim é que a enterraremos no caos!
Juliana sentiu forças para voltar a falar:
— Senhor marquês! Não desejo discutir as vossas razões, mas peço-vos que deixeis meu marido fora dessa conjura!
Altivo, o marquês de Vila Real retorquiu:
— Vosso marido é meu filho, não o esqueçais! Os filhos não devem ser fracos quando os pais são fortes!
D. Miguel tentou reagir.
— Senhor, Juliana tem razão! Não devo interferir nos vossos assuntos...
— E se eu vos der uma ordem?
— Uma ordem?
— Sim, uma ordem! Os outros esperam-vos! Não deveis atraiçoar-nos!
Houve um silêncio trágico. O marquês rompeu-o:
— Então? Que dizeis à ordem que acabo de transmitir-vos!
Cabisbaixo, o duque respondeu:
— Só me resta cumpri-la...
— Pois ordeno-vos que nos acompanheis... no vosso próprio interesse!
E perfilado, num ar solene:
— D. Miguel Luís de Meneses, segundo duque de Caminha! Sereis um dos conjurados!
D. Juliana não conseguiu reter o pranto que corria pelo seu rosto. Murmurou:
— Oh, meu Deus! Salvai-o!
Saiu do aposento, para que o marquês não troçasse da sua desorientação. Mas este pareceu nem ter dado pela sua amargura. Mais à vontade, foi expondo ao filho os seus planos...
A conjura foi estudada, bem delineada. Mas os defensores de D. João IV depressa descobriram o que na sombra se estava tramando. E sem que os conspiradores tivessem ocasião de se defender, foram detidos e presos em local seguro. Entre os prisioneiros encontrava-se D. Miguel Luís de Meneses, segundo duque de Caminha, atirado para a fortaleza de S. Vicente de Belém.
Na solidão do cárcere, D. Miguel compreendia como fora fraco acedendo às ordens de seu pai. Fora porém habituado a obedecer-lhe sempre e não soubera resistir-lhe. Lembrou-se então de tentar explicar a el-rei o que se passara. Talvez D. João compreendesse e perdoasse. E mesmo da prisão ele escreveu uma carta a D. João IV. Tremia-lhe a mão ao desenhar as letras no papel que generosamente lhe trouxeram. E dizia assim:
«Senhor meu Rei: Pedir perdão de um crime que não cometi é bem mais doloroso e cruel do que me sentir culpado. Mas, Senhor, de um só delito posso e devo ser acusado: não denunciei meu próprio pai. Procedi com deslealdade para com o meu Rei... mas que espécie de coração seria o meu, se fosse denunciar aquele que me deu a vida? Não quero ser tido como traidor para com o meu Rei. Mas também não poderia ter sido parricida! Que a vossa magnanimidade possa compreender a minha angustiosa situação, é tudo quanto vos peço e espero de vós, da vossa misericordiosa bondade.»
Recebeu o rei a carta de D. Miguel. Leu-a atentamente. Mas sabia que não poderia fraquejar numa altura em que o seu trono não estava ainda bem alicerçado.
Desfez-se a carta em cinzas e o perdão não foi concedido a D. Miguel. Foi a vez de D. Juliana Maria, duquesa de Caminha, ir lançar-se aos pés do rei de Portugal. Vestiu-se com simplicidade e sem jóias. Levava o rosto molhado de lágrimas e a sua voz era dramaticamente suplicante:
— Senhor!... Senhor meu rei! Se tendes coração, escutai os rogos desta pobre mulher que vedes a vossos pés! Juro-vos, Senhor, que o meu marido está inocente! Assisti à conversa do marquês de Vila Real com o duque. Sei como ele lutou para não pertencer ao grupo dos que estão condenados. Lutou até ao último momento. Mas a vontade do pai foi mais forte. Senhor, libertai-o! Servir-vos-á com fidelidade, juro-vos! E a felicidade voltará, de novo, ao meu lar agora desfeito!
Por momentos, o rosto do rei tomou uma expressão menos dura. Dir-se-ia que ia ceder. Mas, na realidade, o facto teria de ser tomado como lição, e a felicidade não voltou mais ao lar de D. Miguel Luís de Meneses. Os presos subiram ao cadafalso e foram executados entre as vaias e o alarido da multidão. Uma altura houve, porém, em que esta se aquietou entrando num silêncio impressionante. Haviam chamado D. Miguel Luís de Meneses para subir ao cadafalso. E, para o povo, aquele homem estava inocente. Compreendia que pagava pelo crime de seu pai.
Fugiu da cidade a duquesa de Caminha. Tudo quanto lhe lembrasse a corte era para ela motivo de extrema aflição. Foi refugiar-se em S. Pedro de Moel. E aí, todos os dias, ia chorar o seu desespero junto do penedo solitário. Ela e o mar! Ela, na grandeza da sua dor, perante a imensidade das águas oceânicas! Os seus soluços e as ondas marulhando formavam uma estranha orquestra. Falava sozinha, por vezes. E a brisa levava ao infinito as suas lamentações:


— Miguel, meu amor, nunca mais vos verei! Como posso viver sem vós, meu querido esposo? Como não me faz estoirar o coração esta saudade que me sufoca?...
E era assim, muitas vezes, a balada dolente, a trágica canção de saudade que o mar acompanhava. E o povo das redondezas, que se apercebeu dessas estranhas visitas, começou a chamar àquele rochedo da praia de S. Pedro de Moel — o Penedo da Saudade.
Há quem afirme ainda que, ao escutar nesse rochedo os murmúrios do mar, pode distinguir também, como em eco, as lamentações da duquesa de Caminha...


Notas: Recolha da Fonte Biblio MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] e de Ilídia Jóia. Arranjo, composição do texto e fotografias trabalhados por V. Oliveira

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