terça-feira, 23 de junho de 2020

LUANDA E SUAS SEGREGAÇÕES



ANÁLISE A PARTIR DAS SALAS DE CINEMA

(1940 – 1960)

RESUMO:
Este artigo faz uma incursão pela história de Luanda e de seus cinemas na primeira metade do século XX. Em linhas gerais faz um grande panorama da história da cidade e do cinema então existente, para, depois, fazer uma discussão sobre a espacialização das salas de cinema, procurando perceber de que forma esta espacialização reflectia a existência de uma cidade cada vez mais cindida e segregada. 

PALAVRAS-CHAVE: Luanda, cinema, segregações.
Gostava por isso de ir ao Colonial. Ao abrigo da escuridão, aquela multidão heterogénea, de pretos, brancos e mulatos, que gritava, ria e cheirava mal, parecia plasmada num só corpo agitado por uma emoção uníssona e fraterna. No intervalo, porém, distinguiam-se, marcando os seus direitos e os seus fins, e afastavam-se. O  pior de tudo, é que os colegas do liceu troçavam dos frequentadores do Colonial. Chamavam-nos mussequeiros, o que perto das colegas era confrangedor. (SANTOS, 1981, p.65).
Em finais dos anos sessenta do século XX, a cidade de Luanda, Angola, tinha se transformado significativamente por conta da chegada em massa dos portugueses, impulsionados por uma nova política metropolitana de ocupação de suas colónias , que provocou um redesenho demográfico na capital e a expulsão dos negros angolanos das zonas centrais (como o Bairro das Ingombotas) para regiões mais periféricas (a exemplo do Bairro Operário) 3.

3 Em todo o texto fazemos uso das palavras “negro/a angolanos/as” ou mesmo “angolana/o” para nos referir as pessoas nascidas em Angola e que não são descendentes de portugueses, descolando assim este termo da reivindicação nacionalista que ele tem neste período, pois havia portugueses nascidos em Angola (os “brancos de segunda”) que também se consideravam (e de fato eram) angolanos. Juridicamente, estes habitantes nativos eram chamados pelo colonizador como “assimilados” ou “indígenas”, mas esta era uma denominação questionada e combatida por aqueles que viviam em Angola no período. 

A cidade se tornara uma grande multidão heterogénea, de pretos, brancos e mulatos, descritos por Arnaldo Santos em sua obra Kinaxixe (1981), que, por mais que estivessem presentes no cine colonial, logo depois da sessão, “distinguiam-se, marcando os seus direitos e os seus fins”. Naquele tempo, se a “ilha crioula” (se é que existiu em algum momento) tinha dado lugar à cidade segregada e mesmo com alguns espaços de misturas e imbricamentos, as diferentes cisões dentro de Luanda eram cada vez mais visíveis 4.
Associado à imigração europeia, houve também a migração de pessoas do interior angolano. Chamados de “gentes do mato” ou de maneira mais pejorativa “matumbos” pelos habitantes da capital, eles migraram por diferentes motivos, como a imposição portuguesa das culturas obrigatórias no campo, o trabalho compulsório ou mesmo com a perspectiva de mudar de vida na capital da Colónia 
5.
A instalação do porto de Luanda, o aumento da actividade comercial, a abertura de novas estradas que conectava a capital a lugares mais afastados, foram também fortes atractivos para as populações interioranas. A construção de redes de parentesco que traziam para dentro de Luanda os membros de sua família extensa no interior facilitaram estes trânsitos 
6. O próprio reconhecimento social daqueles que viviam (ou viveram) na capital e que por esta razão tomaram contacto com ideias novas, novas formas de sociabilidade e conhecimento eram buscados, sobretudo, pelas gerações mais novas 7.
Como fez o personagem Tamoda do livro
Mestre Tamoda (1974), escrito por Uanhenga Xitu, que era chamado de “mestre” pelos mais jovens do interior por ter adquirido conhecimento na capital e ter traduzido este conhecimento de tal forma que sabia até mais que os portugueses. Outro exemplo é o livro A Chaga (1970), de Castro Soromenho, que se passa no interior de Angola durante a ditadura salazarista. No final do livro, um dos personagens, Severino, convida Zefa a ir para a capital da colónia: “[...] vamos para Luanda. Luanda é terra bonita, tem mar, civilização. Automóvel é só ver, é um atrás do outro, e comboio, vapor pro Puto, lojas não queira saber, só vendo se acredita. Terra de brancos. É pra lá que a gente vai” (SOROMENHO apud CHAVES, 2009, p. 104).
Em grande parte, esta população vinda do interior instalava-se nos musseques, espaços periféricos da capital. Em seu clássico estudo
Luanda: estudos de geografia urbana (1964), Ilídio do Amaral regista que 64,5% dos habitantes dos musseques eram originários de fora de Luanda, ou mesmo do exterior de Angola (Cabo Verde, São Tomé. Moçambique, Guiné...). As regiões de onde mais vinham estes migrantes eram Malanje, Cuanza Sul, Huambo e Cuanza Norte 8

4 A ideia de ilha crioula, misturada culturalmente, foi desenvolvida por Mario Antônio Fernandes Oliveira (1965). Nesta obra, o autor define a existência de uma elite local, os crioulos, e de um ideal de crioulidade, que não será comungado em nosso período de estudo pelo o que chamamos neste de texto de “novos assimilados”. OLIVEIRA, Mário Antônio Fernandes.Luanda, “ilha” crioula. Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1965.
5 Segundo Oscar Ribas (2009), matumbo significava sertão, longes terras, passou a designar em Angola pessoas considerada “atrasadas”, “primitivas”, “ignorantes”. RIBAS, Oscar. Elucidário de termos angolanos In: RIBAS, Oscar.
Uanga (Feitiço).Mercado de Letras Editores, Lisboa, 2009, p.306.
6 Assim, os tios traziam seus sobrinhos, como o personagem Bangu, do livro
Os discursos do Mestre Tamoda (1984), de Uanhenga Xitu, que trouxe o seu sobrinho Marajá para trabalhar com ele na Luanda dos anos quarenta-cinquenta.
7 CHAVES, Rita. A narrativa em Angola: espaço, invenção e esclarecimento. In: GALVES, Charlotte; GARMES, Hélder; RIBEIRO, Fernando R.. (Org.).
África- Brasil: caminhos da língua portuguesa. Campinas: UNICAMP, 2009.
8 AMARAL, Ilídio do.
Luanda e os seus ‘muceques’, problemas de Geografia Urbana. In: Finisterra. - vol.XVIII, nº 36 (1983), p.309. 

A chegada de portugueses e pessoas do interior fez com que Luanda crescesse demograficamente de maneira vertiginosa e se transformasse em um espaço permanente de tensões sociais e raciais. Se em 1940  tinha 61.028 mil habitantes, em 1960 este número cresce significativamente, atingindo 224.540 mil, como se pode perceber nos censos demográficos analisados por Ilídio do Amaral (1983).
A imigração europeia não só retirou o espaço económico e social aos nativos, (tanto os rurais quanto os urbanos), como contribuiu para o aumento da distinção racial e social, visível sobretudo nos espaços de convivência, como os cinemas, aumentando ainda mais a distância entre os vindos da metrópole e os nativos angolanos. É o que passaremos a ver a seguir.
O cinema em Angola
As casas de cinema em Angola surgiram, a princípio, como fruto do investimento dos portugueses que implementavam um sistema de doutrinamento da população mascarado em momentos de diversão e arte. As salas surgiram em vários locais e, além de exibição de filmes, que a princípio tinham o investimento luso, eram também locais para apresentação de grupos musicais, entre outros espectáculos artísticos. Era uma actividade atraente, mas também exclusiva para alguns grupos sociais e Luanda, a cidade com o maior número de salas, foi testemunha dos investimentos na construção de uma identidade angolana.9
A produção do cinema reflecte a sociedade em que ele está inserido. Isso também acontece no cinema africano, assim como em quaisquer outros continentes. Os filmes produzidos em África, na actualidade, buscam parcerias com diferentes países e abordam problemas sociais tais como violência doméstica, violência entre os jovens, alcoolismo, questões políticas ou religiosas. Mas, na origem da produção cinematográfica, especialmente das nações que estavam sob controle imperialista, o cinema se desenvolveu como uma necessidade do Estado de reafirmar sua soberania e serviu como instrumento de propaganda de seus governos.
Em Angola, a prática era a mesma. O cinema era um braço do imperialismo português e serviu como mais um aparelho estatal. Na nota de abertura do livro Angola, o nascimento de uma nação, de Maria do Carmo Piçarra, a autora destaca que o cinema angolano era, na prática, um instrumento de propaganda das acções do Estado colonial. “Eram filmes sem olhar, deslumbrados com as paisagens, montras de exotismo – natural mas também social e cultural. A realidade impunha-se à câmara e esta quedava-se, sem capacidade
de elaborar sobre aquilo em que o olho, mediado pela lente, assentava. ” (PIÇARRA, 2013, p.11).
O cineasta angolano Ruy Duarte de Carvalho discutiu a fabricação da identidade em solo angolano na obra A câmara, a escrita e a coisa dita. Nela, o autor destacou a importância do cinema como um braço forte do governo português, que se utilizava das imagens para doutrinar e reafirmar conceitos. Um exemplo das intenções estatais foi o documentário de 1962, Angola - Decisão de Continuar.10 

9 As principais salas de cinema foram: Cinemas Miramar, Avis (que mudou o nome para Karl Marx), Restauração (atual sede da Assembleia Nacional), Império (mudou para Atlântico), São Paulo, Nacional, Tivoli (Corimba), Tropical, Kipaka, Ngola Cine.
10 Coprodução da RTP, texto de Horácio Caio e coordenação e montagem de Vasco Hogan Teves.
 

Nele, o governo misturou imagens dos levantes ocorridos no norte do país, em 1961, contra a presença portuguesa, mais a intervenção do exército. O objectivo era, além de reafirmar a possessão do território, difundir a ideia de que a defesa não era do Estado português, mas tratava-se de uma acção para defender Angola contra o inimigo estrangeiro, ideia defendida pelo salazarismo.
O estilo mais adoptado pelo Estado, o documentário, dava à produção fílmica a legitimidade necessária para apresentar ao mundo a ideia de “boa relação” entre colonos e colonizados, destacando o estilo benevolente do português para com a população de Angola. Esse estilo de produção foi usado tanto para atrair novos colonos quanto para difundir a ideia de que a permanência em solo angolano era condição essencial para controlar o ambiente hostil agravado com o início da Guerra Colonial (1961-1974). O governo se utilizava dessas obras para reafirmar seu controle, diante das outras nações europeias, destacando que o ambiente de guerra estava controlado.
Os cinemas eram produzidos e apresentados em Angola, como um instrumento estratégico do Estado.
Uma tácita importante para difusão do cinema angolano foi o surgimento dos Clubes de Cinema. Os Cineclubes, como eram chamados, se organizavam a partir de grupos de amigos que se reuniam para discutir, assistir, criticar e produzir cinema. Observavam o comportamento da cidade através das idas e vindas em torno da exibição de uma película. Era o convívio em torno da imagem e os debates posteriores que despertavam a vontade de organização dos clubes e resultou, em alguns casos, em belíssimas salas de cinema.
Uma dessas histórias que envolvem cineclubistas e salas de cinema foi contada numa entrevista concedida à Maria do Carmo Piçarra por Francisco de Castro Rodrigues, um cineclubista do Lobito e criador do cine-esplanada Flamingo, que viveu em Angola até 1987. O seu envolvimento com o cinema vem desde os tempos em que era membro do Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil, em Lisboa, e que viam, no cinema, a possibilidade de uma actividade política mais intensa. Em Portugal, fez parte do cineclube ABC e a experiência que adquiriu foi fundamental para que, anos depois, junto com os irmãos Miradores, criassem o cineclube de Benguela e posteriormente o do Lobito.11
Francisco de Castro relembrou a programação do cineclube, que ia desde a apresentação do filme à plateia, a produção de pequenos artigos, até à organização do debate posterior à exibição. Outra memória foi quanto à acção da censura que, muitas vezes, censurava os filmes sem muitos critérios; assim, em alguns locais assistia-se ao filme completo, em outros não. Também destacou que, nos cinemas de elite, era proibida a entrada de bermudas, ou os calções, como eram chamados. Além da proibição do uso dos calções, esses não poderiam ser logo abaixo dos joelhos. Além disso, os negros não podiam ir ao cinema, por ordem expressa dos proprietários e nem participavam dos cineclubes. Existia o cinema destinado à população pobre, que era o cinema Baía, ao ar livre, que tinha a capacidade de acomodar cerca de quinhentas pessoas.
Cine Flamingo - Lobito





Outra lembrança do entrevistado foi sobre o Cinema Esplanada Flamingo, construído em uma área alagadiça que era cheia de moluscos e, por isso, visitada por muito flamingos. O nome foi escolhido pela população, após um concurso realizado pela rádio. Era um cinema ao ar livre, com capacidade para mil e duzentas pessoas que, no verão, lotava as acomodações somente com os brancos. A população pobre só começou a ter um contacto mais estreito com o cinema após a independência, quando eram organizados os cinemas ambulantes, que percorriam os povoados, ou como o autor chamou, as sanzalas. 
As produções fílmicas nasceram de forma muito amadora a partir de cursos de cinema para jovens angolanos oferecidos pelo cineclube, pois acreditavam “que o cinema é a melhor arma para a revolução.”
(PIÇARRA, 2013, 180) Antes dos festivais de cinema, que só começaram em 1974, organizavam ciclos de cinema amador, geralmente feito pelos brancos e por aqueles que possuíssem máquinas, ou as câmaras amadoras.
11 Segundo Francisco de Castro, tempos depois foi criado o cineclube de Luanda.

As primeiras produções davam conta de paisagens, reuniões de família ou ambientes de trabalho, mas, segundo contou Francisco Castro, não se filmava bairros pobres, pois, só pelo fato de permitirem que alguns estivessem na plateia, começaram a “ser vistos como terroristas ou pelo menos como patrocinadores de terroristas.”12 
Esse cenário mudou após a Independência. Castro lembrou que, quando o filme da Sarah Maldoror, Sambizanga, foi exibido no Lobito, o público aplaudiu de pé. Mas, isso só foi possível por causa da Independência; antes, só filmes comerciais. Outro episódio lembrado faz referência ao período em que o Lobito foi ocupado pela União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA). Foram noventa 
dias exibindo o mesmo filme, Os sete magníficos, o único. E, mesmo em dias tão instáveis, vir ao cinema significava momentos de resistência ou uma oportunidade de conhecer uma arte, antes tão restrita, e o cinema lotava todos os dias.13 
O cinema esplanada aproveitava espaço e se adequava à questão do clima quente. Um exemplo é o cinema Miramar, com vistas para a ilha de Luanda.

As salas de cinema em Luanda Uma característica das sessões de cinema em Angola era o ambiente de exibição dos filmes. Geralmente a céu aberto, as noites de Luanda eram o cenário mais acolhedor para se assistir a um filme. Contando com características climáticas, o que permitia que o início das sessões fosse marcado para às 18h30m.
O cine Miramar, que ficava sobre a baía e o porto de Luanda, era um cinema sem paredes. Para Manuel Fonseca, o bom de ir a esse cinema é que ele “tinha uma vista absolutamente divina, espectacular, à noite, com as luzes da baía, com as luzes do porto. [...] Era um duplo espectáculo.” 
14A primeira sala de cinema e teatro de Luanda abriu as portas

no ano de 1932, com o nome de CineTeatro Nacional (ou Cine Nacional como eram mais conhecido). Este foi, sem dúvida, o mais importante cinema de Angola, no qual as obras estreavam primeiro, antes de circular por outros cinemas do país. Em 1943, Cine-Teatro Nacional exibia A Torre de Londres, de Rowland V.Lee, enquanto o cine-teatro de Benguela anunciava Meu filho e meu rival e Peço a palavra, que já tinham sido exibidos em Luanda 15.
Cine Calunga - Benguela

12 Idem, p. 183
13 O cineclube, e todo o material (revistas, boletins, artigos), foi doado para “três rapazes angolanos”. Os filmes foram entregues na Cinemateca de Portugal. O autor não soube dizer o destino ou o que aconteceu depois.
14 “Luanda, cinema a céu aberto”, Manoel Fonseca em entrevista concedida à Maria do Carmo Piçarra. Publicada em
Angola: o nascimento de uma nação – o cinema do império, p. 187.
15 GONÇALVES, Jonuel. 1943 em Angola. In:
Revista Perspectivas do Desenvolvimento, v. 1, p. 120, 2013 

Em 1956, havia em Angola 19 salas de cinema, com uma lotação total de 15.636 lugares, sendo que algumas destas contavam também com jardins e bares. Neste ano, 1.695.000 bilhetes foram vendidos e 4.340 películas exibidas, o que evidencia um interesse dos habitantes do país por este espaço de lazer e levaria a um aumento dos cinemas nos anos seguintes, mas, por outro lado, uma diminuição das salas ao ar livre, pois, com o acirramento da guerra anticolonial, havia o medo de possíveis ataques neste espaço colectivo 16.
Nestes cinemas haviam salas para “civilizados” (brancos, crioulos e “novos assimilados”), como o já citado Nacional, localizado no centro de Luanda, e salas para os “não-civilizados” (“indígenas”), como o Cine Colonial e o N'gola, localizadas em zonas mais periféricas. A separação também ocorria no tipo de filme exibido: enquanto nos cinemas dos “civilizados” passavam filmes europeus, nos dos “indígenas”, reproduziam-se filmes de faroeste e kung-fu 17.
A quebra desta cisão provocava conflitos de diversas ordens. Um deles ocorreu quando o grupo musical, N'gola Ritmos, um dos mais importantes de Angola, que cantava em português e quimbundo e era famoso por suas apresentações nos bares e restaurantes dos musseques, se apresentou no Cine Nacional, o cinema dos brancos e “civilizados”. O grupo foi alvo de discriminações raciais e hostilizado pelos portugueses que gritavam “ide embora, vão cantar para a sanzala!”, só parando o protesto depois que o grupo deixou o palco 18.


16 Segundo informações de Luiz Luppi, registradas por José Gonçalves (1964). GONÇALVES, José J. A informação em Angola (alguns subsídios para o seu estudo). Pesquisa resultado do Curso de Extensão Universitária (1963 – 1964) do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina da Universidade Técnica de Lisboa, 1964.
17 Esta informação é destacada por Marissa Moorman (2001), num dos poucos textos existentes sobre o cinema em Angola. MOORMAN, Marissa. Of westerns, women, and war: Re-situating Angolan Cinema and the nation. Research in African Literatures. vol.32 no.3, 2001. Disponível em http://www.jstor.org/ discover/10.2307/3820427?uid=3737664&uid=2129&uid=2&uid=70&uid=4&sid=21100906515131. Acesso em 09 de Julho de 2012. 
18 SANTOS, Jacques Arlindo dos. ABC do Bê Ó. Edições CC. Angola, 1999, p. 226.


Cine Colonial (Clô Clô) 
Já no Cine Colonial, a presença nativa negra foi mais significativa, como se pode perceber na imagem abaixo, relativa aos anos setenta. Percebe-se a presença de alguns brancos, mas a grande maioria é a população negra, na parte externa do cinema.
Mas, quando um cinema permitia a entrada de todos, a segregação se dava na distribuição das cadeiras. Os chamados “indígenas” ficavam nos bancos mais próximos à tela; logo atrás deles, nas cadeiras, sentavam-se os crioulos empobrecidos ou os “novos assimilados”; e, nos assentos mais modernos, muitas vezes estofados, ficavam crioulos mais ricos e os portugueses. Para cada uma dessas seções, o valor do bilhete era diferente 19
Jacques Arlindo dos Santos, em seu livro de memórias Abc do Bê Ó (1999), diz que após a inauguração dos cinemas eram vendidos três tipos de bilhetes: superiores (destinado aos brancos), plateias (para os “assimilados”) e gerais (para os “indígenas”). O Cine Colonial, um dos mais frequentados pela população mais pobre, popularmente conhecido como “Clô Clô”, situado no Bairro São Paulo, era o mais democrático, pois, mesmo acabando os bilhetes, quando se tinha a lotação esgotada, as pessoas levavam cadeiras de suas casas ou se sentavam no chão. Nos cinemas de Angola, a separação dos locais destinados a cada grupo era uma prática comum. No Cine Benguela, havia uma zona reservada aos indígenas e, além dos lugares demarcados, eles não podiam assistir a todos os filmes. Nos cartazes de propaganda de muitos filmes, a proibição vinha explícito com os seguintes lembretes: “Interdito a Indígenas ”20.
As distinções entre os cinemas também são destacadas por Arnaldo Santos (1981) no livro Kinaxixede 1965. Na última parte do conto “Despertar”, que se passa no fim do período colonial (anos 50-70), o protagonista Gigi, que naquele momento da história já tinha conseguido entrar no Liceu, deixa de ir ao já referido Cine Colonial para ir ao Cine Nacional, localizado na Alta. Gigi então mostra as diferenças
entre os frequentadores dos dois espaços. No Nacional “[...] o cinema enchia-se de moças lindas, brancas e cabritas de cabelos ondulados, de fala suave”. Já no Colonial, “[...] a gente que frequentava o Colonial tinha ficado no começo da vida e competia já, desesperadamente, por necessidades primárias” 21. De origem humilde, apesar de estudar no Liceu, ele gostava de ir ao Cine Colonial, só não poderia deixar seus colegas saberem, pois estes chamavam os frequentadores deste espaço de mussequeiros.
Quando em Angola alguns desses interessados por cinema se reuniam em cineclubes para assistir e/ou debater sobre determinados filmes, dificilmente contava-se com a presença de angolanos negros. O português Francisco Castro Rodrigues, em entrevista a Maria do Carmo Piçarra (2013), diz que os nativos não iam aos cineclubes porque tinham medo, afinal nos outros cinemas eles não podiam entrar. Mesmo quando em alguma situação eles podiam frequentar, não iam, pois se tratava de «coisas de branco» 22.

19 SANTOS, Jacques Arlindo dos. ABC do Bê Ó. Edições CC. Angola, 1999, p.19
20 GOMES, Miguel. Cinema dos tempos que já lá vão.
Revista Austral, Luanda. 2010, p.82.
21 SANTOS, Jacques Arlindo dos.
Op cit.. p.64-65.
22 PIÇARRA, Maria do Carmo. A revolução projectada de um cine-esplanada: entrevista a Francisco Castro Rodrigues
  


Considerações finais

O cinema em Angola nasceu da necessidade de registar imagens e reafirmar o controle do território por parte do colonialismo português, sendo que as acções do Estado perceberam no cinema uma forma de controle, propaganda e dominação. A própria distribuição das salas pelo território de Luanda demarcava uma série de discriminações e segregações existentes naquela realidade social.
Estas demarcações eram desconsideradas muitas vezes pelas populações pobres locais. Na mesma obra de Arnaldo Santos (1981), o personagem Gigi diz que gostava de ver os rapazes do musseque que enganavam os cipaios e saltavam os muros do Cine Nacional: “[...] o que lhe interessava mesmo ver eram aqueles rapazes do musseque saltar o muro do cinema e enganarem os cipaios. Pela rede do muro ele viu-os passar, namorando a oportunidade de dar o bote, logo que o cipaio se distraísse” (SANTOS, 1981, p.67). Ou ainda o Mulato Armindo, do conto “Companheiros”, de Luandino Vieira, que “[...] sabia aquilo de Luanda. Sabia bem como se fazia. Tinha calma. Não tinha medo do polícia nem do cassetete. Em Luanda fazia mesmo às portas dos cinemas” (VIEIRA, 2002, p.162), à espera de algum desavisado que pudesse facilitar suas mãos ágeis de gatuno.
O cinema em Angola, até as primeiras décadas do século XX, não era, por conseguinte, propriamente angolano, pois esteve a serviço do imperialismo, fazendo a propaganda do regime colonial. Observamos que as discriminações ocorriam em várias instâncias, tendo sido, também, marcada espacialmente nas salas de projecção, onde os melhores e confortáveis lugares eram destinados à elite. Uma cartografia segregatória se delineava, assim, claramente, revelando preconceitos e uma cidade partida entre o asfalto e os musseques. Mas são os “mussequeiros”, rapazes vindos dos bairros pobres, que, como evidenciam os contos referidos de Luandino Vieira e Arnaldo Santos, que começam a expressar uma resistência, cuja subversão será depreendida mais tarde.

Referências
AMARAL, Ilídio do. Luanda e os seus ‘muceques’, problemas de Geografia Urbana. In: Finisterra. - vol. XVIII, nº 36 (1983), p.309.CHAVES, Rita. A narrativa em Angola: espaço, invenção e esclarecimento. In: GALVES, Charlotte; GARMES, Hélder; RIBEIRO, Fernando R.. (Org.). África- Brasil: caminhos da língua portuguesa. Campinas:
UNICAMP, 2009.
GOMES, Miguel. Cinema dos tempos que já la vão... In:
Revista Eletrônica Buala, 2010, disponível em: http://www.buala.org/pt/cidade/cinema-dos-tempos-que-ja-la-vao Acesso em 26/08/2017.
GONÇALVES, Jonuel. 1943 em Angola. In:
Revista Perspectivas do Desenvolvimento, v. 1, p. 120, 2013.
GONÇALVES, José J.
A informação em Angola (alguns subsídios para o seu estudo). Pesquisa resultado do Curso de Extensão Universitária (1963 – 1964) do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina da Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Política  


Mulemba
1 Washington Santos Nascimento
Professor Doutor de História da África da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

2 Marilda dos Santos Monteiro das Flores Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (2014). 

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