- Estás um homem, rapaz! Já quase me passas. Ora, chega-te aqui!
Coloquei-me a seu lado, chegava-lhe aos ombros.
- Vais ser alto como o teu tio. Senta-te que vou ali à Ti Maria Ramas buscar um queijinho fresco. Hoje vieram as quinteiras, a tua mãe gostava muito.
Sentei-me um pouco no escano da cozinha e espreitei a velha sala. As fotografias nas paredes irregulares, emolduradas com adornos simples, tinham do passado a sua alma. Lá estavam todos. Os filhos, a esposa, minha tia Balona que já partira e todos os irmãos. Destacadas sobre a cómoda encostada na parede de tabique que cortava com a pequena janela, havia duas molduras mais pequenas, com as suas irmãs, Tia Chica e Beatriz, a mais nova, minha mãe. O tio Júlio, que missionários holandeses levaram para o Oriente em criança, surgia sozinho num canto da mesa de batina negra. Mandou o retrato por barco, para ali repousar na memória do seu irmão. Era o seu menino. Amava-o como se ama um filho.
Ficaram cedo sem os progenitores, minha mãe e meu tio Padre. Com um e três anos respectivamente, foram abrigados em teto comum, com o meu tio Paco e as minhas tias Maria e Francisca.
-Passámos muito, Tónio Júlio, para os criar a todos. Ficaram pequeninos sem os teus avós, e graças a Deus, com a ajuda da tia Maria, da Francisca, mais da minha Balona, - e, olhando para trás do castelo, lugar de repouso celestial, ali paredes meias com a sua casa no carril, lá nos conseguimos aguentar!
-E os machos tio, ainda são os mesmos?
-Oh rapaz, machos como esses já não há. Comprei estes dois que viste ali na “loje” há pouco mais de quatro anos. Fui com teu primo aos “Grazes” a Mogadouro e comprei estas duas pilecas a um fulano de Bruçó. Não são maus, mas como aqueles que conheceste… penso que já não nascem!
Assomei à janela, olhei a rampa que subia da praça para o castelo e fiquei ali a dormitar no tempo.
- Já lá vem um! - grita o João Queijeiro, o costumeiro sentinela de serviço aos carros carregados de palha.
- É o do Ti Paco! Traz uma carrada de palha mais alta que a torre. Nem que se esfolem todos. Os machos desta vez não se aguentam.
E lá vamos, os raparigos todos, para o muro do adro com os olhos “fisgados” no alto da Costa. Lá vem ele, as rodas a girar, a remorder no eixo de madeira.
Meu tio, de vez em quando, untava os eixos com sabão feito de azeite pela ti Alzira, para baixar o fino ruído que tanto incomodava a patrulha da guarda.
E nós, ali, ansiosos que ele chegue à Praça. Lá vem ele! Já se “oive” bem a chiadeira.Desce a Costa virado ao Vale, arre, macho! Agora mais devagar que é a subir, ali vem o carro na rua do Vale, está quase a chegar à Praça, já se assoma ó cimo da rua, os machos a chegarem-se à porta da Igreja, quase a pedirem clemência. Parece uma procissão, o restolho ceifado, o trigo a suar, encavalitado no carro, o sol de “Zonzinho”, a eira mais nobre da vila:
Os homens sentados no muro da igreja que dava para o freixo já esperam de mangas arregaçadas, para ajudar os machos, sempre agradecidos.
-Eh ti Paco, com essa carrada os animais estoiram!
-Deixai-vos estar, nem que o diabo os arraste têm de subir.
As bestas já não podem mais..
- Eh macho…eh macho, vamos…vamos… raios vos partam !...
As bestas recomeçam a via sacra, puxadas pelos gritos dos ajudantes de prevenção. Meu tio segue na frente, ladeira acima, com a vara a propósito orientando o “cortejo”. Os cascos das bestas calcam a terra batida semeada de pedras, soltam-se agora uns seixos, rebolam por ali abaixo e, ai!..quase nos acertam na cabeça, até que param na lomba da Praça. E meu tio, as bestas e o carro já estão a chegar-se ao freixo que, salamurdo, nem um galho estica para dar uma ajudinha.
-Vamos… machos dum raio, se me deixais ficar mal! – grita-lhes o Ti Paco.
O Zé Carrasco, o Chico da Albandeira, o Pedro da Enrelinha e até a velha Isaura já seguram a palha descaída das engarelas tortas pelo peso da carrada. Nós lá vamos, ao lado das bestas, elas de olhos mortiços, nós de grito afiado, à moda do ti Paco. Eh! machos dum raio!
-Já está, já está – avisa o mandador.
É o meu tio, o homem da tarde, a mostrar-se, “astifeito” da jornada.
-Eh ti Paco, isso é que são machos! - atira o Manuel Alveles.
Segue agora a comandita por caminho escorreito, até aos palheiros por trás do castelo. A carga, despejada por cima, entra até chegar às telhas...
- Ficas cá muito tempo? Se quiseres podes dormir aí.
-Obrigado tio, já me comprometi com a tia Chica. O Manel disse que me levava até à horta do carril.
-Vai, vai, tem lá boas maçãs.
Despeço-me com um até logo, desço as escadas esquinadas, saio e vou até à Praça. Sento-me na soleira da entrada da casa do Maurício. A infância chama por mim.
Outra vez ele, agora a trote lento sentado entre os alforges. Garboso e alto, seco de carnes. Olhos dos Pacos, azuis, candeias a procurar o mundo. De aceno e sorriso, saúda quem, na Praça, dá uns dedos de conversa, antes da janta. Tocam as trindades e os raparigos correm lestos à bênção familiar. Inclina-se da mula e puxa-me para me dar um beijo.
-Que Deus te abençoe, vai para casa que são horas!
Faço-me agora à Rua das Eiras, até à minha casa de ontem. Empurro o postigo, levanto a aldraba da porta. Entro naquela noite.
Fogo!...Fogo !...
Meu pai salta da cama e galga as escadas num raio. O Zé Michela, bombeiro e vizinho do lado, já corre pela Rua da Ti Quintas direitinho ao quartel da corporação, ali no Vale. A minha mãe assossega-me, eu fujo para a rua, com medo das chamas e dos gritos. Mulheres, a Maria Cascalha à frente, correm rua abaixo, atrás da gritaria. Há fogo! Há fogo! Abrem-se janelas e varandas, espreitam olhos ensonados e medrosos. Corro à Praça. Mulheres carregam cântaros nos quadris e nas cabeças, a acudir, a acudir.
- É nos palheiros atrás do castelo, está tudo a arder!
Passa a prima Maria Engelca e pega-me ao colo.
- Oh filho, onde está a tua mãe?
Eu tremo de susto, agarro-me a ela, como a tábua ainda por arder.
--Não leves o menino, não leves o menino! Fica aqui comigo – grita a minha avó.
De colo em colo, chego a casa da avó Zaira. Ali, não arde nada. De fora, vem o sufoco das labaredas, o fumo e a notícia.
--Ardeu quase tudo. O pior foi no palheiro do ti Paco. Não se aproveitou nada!
Corre agora o mês de Junho de 2001. O ti Paco deixa chegar a noite sem aparecer. A Praça estranha não o ver passar ao final do dia. Passam horas, alvoroça-se a vila para os lados do Carril. Amigos saem à procura. Encontram-no caído sobre as pedras do ribeiro, com o fiel macho, estacado de guarda ao corpo de oitenta e oito anos. Umas velhas tábuas, que serviam de passadiço, já podres pelos anos, tinham cedido na passagem de regresso a casa. Caiu desamparado.
Subi ao nono andar do número 28 da Av. Estados Unidos da América em Lisboa, residência dos missionários da diocese de Macau. Meu tio padre vivia ali, desde que um AVC lhe havia reduzido a mobilidade..
Lia sentado à mesa. Nos meus olhos, leu a notícia.
-Olá, António Júlio, vens com má cara!
-O tio Paco morreu!
Não lhe vi mover um músculo do rosto. Correu para bem longe no tempo e na distância. Pareceu-me ver o último abraço dos irmãos.
-Ah…
-Não contes! Não quero saber como foi.
Chorámos!
JCorredeira
“In fragmentos de memórias”
(Obrigado Odete Ferreira , pelos pormenores)
foto: Victor Araujo
“In fragmentos de memórias”
(Obrigado Odete Ferreira , pelos pormenores)
foto: Victor Araujo
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