terça-feira, 5 de março de 2024

O MARAVILHOSO PODER DAS PALAVRAS


Letícia foi minha aluna numa escola em Trás-os-Montes em plena Serra…

Tinha 11 anos, conhecia as carências e a sujidade da vida e, mantinha sempre a mesma roupa, herdada por uma tradicional necessidade familiar. 
Onze anos a lutar com os bichos dia e noite. Com um nariz que como vela escorria o tempo todo. Com cabelo comprido e desbotado servindo de escorrega para os piolhos. Mas…mesmo assim, era uma das primeiras a chegar à escola. 
Na hora do trabalho em grupo ninguém desejava trabalhar com ela e, os colegas não lhe davam a oportunidade de demonstrar o quão inteligente ela era. Letícia conheceu bem cedo o significado do repúdio! 
De vez em quando contava histórias aos meus alunos mas, interrogava-me e comentava para comigo próprio!... De que adianta ler histórias para estas crianças se algumas delas nem comeram?! Servirá de alguma coisa alimentá-los com fantasias?!  
Eu acreditava que sim, mas não sabia até onde! Constantemente contava-lhes histórias, especialmente na hora mágica das leituras, duas vezes por semana. E, num outro dia, li o conto da "Cinderela" e, quando cheguei à parte em que a fada madrinha transformou a jovem andrajosa numa linda princesa com um vestido vaporoso e de chinelos de cristal, Letícia aplaudiu freneticamente o milagre realizado. 
Noutra ocasião, perguntei aos meus alunos o que eles desejavam ser quando crescessem… E o baú dos seus desejos abriu-se para mim! 
Alguém queria ser astronauta, embora nem a carreira chegasse à aldeia outros, desejavam ser mestres, artistas ou, soldados. Mas quando foi a vez da Letícia, levantou-se e com voz firme disse: "Eu quero ser médica! " e, uma gargalhada insolente foi ouvida na sala de aula. 
Letícia com lágrimas nos olhos encolheu-se toda no banco invocando a fada madrinha da Cinderela que não chegou… 
E o meu trabalho nessa escola terminou com o final do ano lectivo…  
A vida seguiu o seu curso e passados 15 anos, voltei por estes lugares para reviver memórias deparando-me com algumas respostas e outras quantas perguntas. Algumas, Boas notícias...,…sendo uma delas, que a carreira já passava na aldeia! 
Antes de chegar ao cruzeiro onde transbordam os passageiros que vão para a outra povoação, uma jovem abeirou-se de mim vestida de branco e, abordou-me: 

O senhor é o professor Vítor Manuel!... Foi meu professor! E surpreendida e sorridente deu continuidade à conversa, acrescentando, “É Aquele que podia encantar cobras com as histórias que contava.” 
Lisonjeado, respondi: 
Sim, esse sou eu!... 
Não se lembra de mim, professor? Perguntou ela, e continuou dizendo com a mesma voz firme de outros tempos…eu sou a Letícia... E, eu, sou médica... 
Por momentos revivi as Minhas Memórias para reconstruir a imagem daquela garotinha que noutros tempos ninguém queria ter por perto! 
Ela desceu no cruzeiro deixando, como a Cinderela, a pegada de seus ténis no estribo da carreira… E eu, focado no passado com mil perguntas para lhe fazer, fiquei especado pela surpresa e, a ouvi-la ainda a dizer: Trabalho em Bragança... Encontre-me na clínica tal... e, abalou... 
Um dia fui à clínica que ela me referenciou e não a encontrei. Nem a enfermeira nem o porteiro a conheciam. "As histórias são lindas, mas não deixam de ser histórias", e eu acabei por lamentar não acreditando no que ela me tinha dito. 
Arrependido de ter ido, e quase derrotado, encontrei a directora da clínica e falei com ela. E o que ela me disse encheu-me de felicidade despoletando a minha fé nas pessoas e na literatura: 
A Dra. Letícia trabalhava aqui - contou-me a directora. Ela é uma pessoa muito humana e tem muito amor pelos pacientes, principalmente pelos mais necessitados. 
Essa é a pessoa que eu procuro - quase gritei! 
Mas já não está entre nós - disse a directora. 
Morreu? - Perguntei ansioso. 
Não, disse sorrindo. A Dra. Letícia candidatou-se a uma bolsa de estudo e ganhou-a... Agora está em Itália. 
Letícia continua a aprender mais e a ensinar os seus segredos para lutar e prosseguir os seus sonhos e, eu, ainda quero saber até onde vai o poder das palavras e qual será o segredo para encantar as cobras!... 
Como professor, o que posso fazer para equilibrar a balança da justiça social em casos semelhantes?! Quando começou a descolagem dos sonhos de Letícia?! E qual terá sido o destino do resto dos seus companheiros?! E onde estará a força das mulheres que superam qualquer expectativa?! 
Não quero mais ser o professor da Letícia! Agora quero aprender e quero que ela me ensine como uma lagarta evolui para se tornar um anjo e, acima de tudo, quero descobrir qual foi a varinha mágica que a transformou na Princesa do Conto de Fadas.

"Letícia, piolhos e…contos de fadas”



Nota: Recolha deste texto de um autor desconhecido. Resumi, “consertei-o” e coloquei imagens para o melhorar. V. Oliveira 

Sem comentários:

Enviar um comentário