terça-feira, 25 de julho de 2017

UMA GUERRA JUSTA


50 anos da intervenção portuguesa no Biafra (1967-1970)
Foi o conflito africano que maior sulco deixou na memória de muitos ocidentais, pois terá sido a primeira grande desilusão para quantos haviam aclamado o surto de independências no início da década de 1960, começadas com o aceno eufórico de um futuro promissor e terminadas em brutais ditaduras, guerras civis e matanças que infelizmente ainda hoje projectam uma sombra sobre o continente negro. Antes do colapso do Estado na Libéria, na Costa do Marfim, na República Centro Africana, no Zaire e na Somália, das intermináveis guerras em Moçambique, Angola, Sudão e Chade, o Biafra ficou na lembrança de uma geração como a abertura das portas do inferno e a revelação do que de pior pode a insensatez humana provocar.
Os antecedentes da guerra:
Tudo começou em meados na década de sessenta na Nigéria, esse colosso que fora colónia britânica entre 1860 e 1960. Desenhada para a independência como uma república federal, com o poder partilhado pelos três principais grupos – os Hausa muçulmanos no norte, os Yoruba sincréticos no oeste, e os Igbos católicos no sudeste – a Nigéria viu esse equilíbrio romper-se subitamente em 1965, quando as forças armadas tomaram o poder em Lagos e desencadearam um processo de centralização visando retirar competências aos governos regionais. As populações católicas Igbo, então a elite social do país, foram expostas a brutais massacres no norte e oeste, chacinas que provocaram dezenas de milhares de vítimas e obrigaram ao êxodo de dois milhões de pessoas em direcção às suas terras de origem. Em finais de Maio de 1967, o coronel Ojukwu, Igbo descendente de uma das mais influentes famílias da elite católica, temendo que a violência anti-católica redundasse em genocídio generalizado, anunciou a secessão do sudeste e declarou unilateralmente a independência da República do Biafra.
A guerra:
Para prevenir um ataque de grande envergadura, o novo exército biafrense, mal armado mas comandado pelos melhores oficiais do antigo exército federal, tomou a iniciativa de lançar uma ofensiva em direcção à capital nigeriana, mas acabou por ser detido em Ore, a meio caminho de Lagos. Perante uma poderosa contra-ofensiva do exército nigeriano, o Biafra iniciou preparativos para uma longa guerra defensiva de desgaste que obrigasse a comunidade internacional a mediar o conflito e levasse o governo nigeriano a reconhecer a independência do novo Estado. A desproporção de forças era enorme, agravada pelo facto de a Nigéria, enquanto maior produtora africana de ramas petrolíferas, poder angariar meios, crédito e a cumplicidade de poderosas companhias multinacionais, mas igualmente por ter as melhores relações com o Bloco de Leste. Assim, desde o início daquela guerra, o governo nigeriano recebeu o apoio da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e da URSS. Os Mig’s da força aérea de Lagos lançaram desde as primeiras semanas uma campanha de terror sobre o Biafra, lançando indiscriminadamente bombas de napalm, metralhando colunas de retirantes e destruindo todas as infraestruturas vitais em território biafrense.
A intervenção luso-francesa:
Em Paris, após muito instado pelos círculos africanistas do Eliseu, De Gaulle decidiu-se por uma discreta ajuda ao Biafra, conquanto a mesma não fosse directamente prestada pelo governo francês, mas por empresários agindo a título pessoal. A timidez francesa foi contrariada pelo governo de Lisboa. Não fosse a rápida decisão portuguesa, a nova república do Biafra não teria resistido à contra-ofensiva nigeriana de Outubro de 1967. Deu-se início a uma ininterrupta ponte aérea. Os aviões da TAP abasteciam-se de armas em Malta, compradas um pouco por todo o mundo a negociantes de armas, e regressavam a Lisboa, onde a carga era transferida para aeronaves da Força Aérea Portuguesa e expedidas para São Tomé. Do arquipélago português, aviões DC-3 levantavam voo ao cair da noite, furtando-se aos caças soviéticos e aterravam, por fim, em improvisadas pistas de terra batida nos confins do Biafra, descarregando armamento, víveres, medicamentos, médicos, enfermeiros e jornalistas ocidentais.
A situação foi-se agravando para a causa biafrense. Em finais de 1967, o exército nigeriano conseguiu cortar o acesso ao mar pelo Biafra, impedindo que a ajuda ao novo Estado fosse prestada por mar. O Biafra transformara-se num Estado encravado, pelo que o contacto com o mundo exterior só se poderia doravante manter por via aérea. Lisboa facultou todos os meios de que podia dispor – telecomunicações, munições, medicamentos e até emissão de moeda, a Libra do Biafra, impressa na capital portuguesa – mas com o agravamento da situação militar, Portugal passou a trabalhar intimamente com empresas de recrutamento mercenários (suecos, franceses, belgas, alemães). Finalmente, até a débil força-aérea do Biafra, comandada por um aventureiro sueco (o barão von Rosen) passou a contar com pilotos portugueses.
O genocídio e o resgate das crianças biafrenses:
A partir de meados de 1969, a guerra levada ao Biafra pelo exército nigeriano passou a ser de extermínio. Aos olhos do mundo chegaram as imagens terríficas de um povo condenado à morte pela fome e por sistemáticos massacres, mas que teimava em resistir e reclamava o direito a governar-se segundo as suas tradições e instituições. Foi graças à denúncia dessas inenarráveis atrocidades, conseguida graças a Portugal, que as instituições internacionais e a opinião pública ocidental despertaram para a necessidade de prestar apoio humanitário em larga escala aos Igbos. Portugal montou a sua própria ponte-aérea, retirando do Biafra centenas de crianças e acolhendo-as com todo o carinho em São Tomé. Ali permeneceram, alimentadas, vestidas, medicadas e amparadas até 1970, quando, exangue, o Biafra capitulou perante a força nigeriana. O acolhimento das crianças do Biafra em solo português foi, talvez, a mais bela demonstração do compromisso de lealdade que Portugal exibiu perante o Biafra, essa república efémera condenada ao fracasso.
MCB em Nova Portugalidade FB

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