Durante o século XV os portugueses eram tidos como os maiores corsários da
cristandade, actividade considerada nobre e honrada e apoiada pela família
real.
O corso era muito mais do que simples pirataria.
Cumpria um papel determinante na defesa da costa Sul de Portugal e da
navegação, sem encargos para o estado, que recebia parte dos lucros
arrecadados. O corsário não era apenas um pirata, mas uma espécie de
guerrilheiro do mar, que defendia os interesses estratégicos do país,
preenchendo a lacuna da falta de uma marinha de guerra eficaz. A versatilidade
dos navios corsários tinha uma grande eficiência no combate à pirataria inimiga
e o carácter não oficial do corso desresponsabilizava a coroa dos actos por si
cometidos.
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Gravura de Ceuta no Séc. XVI de Braun and Hogenberg |
Com a conquista de Ceuta, Portugal passa a controlar a navegação no Estreito de Gibraltar e afirma-se perante Castela como a grande potência naval da região. Este facto, aliado à necessidade de proteger os cada vez mais numerosos comboios de navios mercantes dos assaltos dos corsários Norte Africanos, origina um incremento do corso português, que esteve na génese dos próprios Descobrimento. Portugal utilizava a guerra no mar desde que era nação. O mais antigo corsário português de que há memória foi D. Fuas Roupinho, o Almirante, cavaleiro Templário e alcaide de Porto de Mós. A sua actividade como comandante naval desenvolveu-se durante o reinado de D. Afonso Henriques, combatendo os corsários Norte Africanos e fazendo incursões no Algarve e Andaluzia, chegando mesmo a atacar Ceuta. Contava com uma frota de 40 navios.
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D. Fuas Roupinho |
É inegável que
Portugal tinha já nos séculos XIII e XIV uma indústria de construção naval
forte, como provam as inúmeras referências a taracenas de construção e
reparação de navios.
No século XIV,
D. Dinis contrata o genovês Manuel Pessanha (Emanuel Pessagno) para organizar a
armada portuguesa e operar nas costas do Algarve e Alentejo. Pessanha introduz
as galés na guerra do corso, navios movidos a remos e à vela, de grande
versatilidade. Como recompensa pelos seus serviços foi-lhe concedido o título
de Almirante e doada a Vila de Odemira.
O Algarve era
o centro da actividade marítima portuguesa ligada à guerra do corso e à
exploração dos mares, e uma zona privilegiada no relacionamento com o Norte de África.
Essa predisposição tem a ver com o facto de após a sua conquista pelos
portugueses não ter existido um movimento significativo de populações para o
Magrebe, ficando muitos mouros na região, que mantinham contactos e trocas
comerciais com Marrocos.
O Algarve era
um mundo à parte no contexto de Portugal, isolado pela serra algarvia, mantendo
as suas tradições e cultura intactas. “Basta referir que em 1320, no reinado
de D. Dinis, não havia ainda, ao que se supõe, nenhuma igreja cristã em Lagos,
o mesmo acontecendo aliás em Lagoa, Portimão, Monchique, Olhão ou Vila do
Bispo”.
O aumento da
presença dos portugueses no Algarve e sobretudo o desenvolvimento do comércio
na região, que se torna um importante entreposto de produtos entre o
Mediterrâneo e o Norte da Europa, tem como consequência o incremento dos
ataques dos corsários mouros, que frequentemente faziam pilhagens nas próprias
cidades.
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Planta da cidade de Lagos de Alexandre Massey, 1621 |
Para fazer
face a esta situação, “el-rei D. Pedro concedeu aos moradores
de Lagos o direito de andarem armados e esta concessão régia com este privilégio
dá bem ideia do ambiente de guerra latente que se vivia.
O Mar das
Éguas era permanentemente percorrido por navios corsários, portugueses e
mouros, em busca de vítimas para os seus ataques.
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Mar das Éguas ou Golfo dos Algarves visto de satélite
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Embora os contactos comerciais pacíficos nunca tenham sido
interrompidos, assistiu-se então ao recrudescimento da pirataria. De parte a
parte, tornam-se cada vez mais frequentes os ataques de piratas a embarcações
comerciais ou as incursões a povoações costeiras.
Vemos assim
que no final do século XIV a actividade corsária generaliza-se em Portugal. Os
corsários portugueses actuavam preferencialmente no chamado Mar das Éguas, ou
Golfo dos Algarves, e no Atlântico, mas também no Mediterrâneo, quer fosse ao
serviço do Rei de Portugal ou de nobres nacionais, quer fosse por conta
própria, quer fosse inclusivamente ao serviço de potências estrangeiras. Ao
corsário era atribuída uma “carta de corso”, documento que legitimava a sua
actuação perante as autoridades e lhe permitia usar os portos desse país como
bases. Em troca, o corsário ficava vinculado à política externa do seu
patrocinador, a quem entregava 1/5 dos seus proveitos.
A casa real
não se limitava a apoiar o corso, como detinha os seus próprios navios
corsários, que saqueavam e atacavam navios, e promoviam expedições de busca de
novas terras, para a expansão da sua actividade, pilhagem dos seus recursos e
sobretudo rapto e escravidão dos seus habitantes. O corso era uma forma de enriquecimento
e de ascensão social, já que muitos escudeiros eram nomeados cavaleiros após
passarem algum tempo nos navios corsários, beneficiando também de reduções e
isenções de impostos.
A actividade
dos corsários portugueses teve um tal incremento no século XV, que não só
atacavam os navios sarracenos, como os próprios navios de Portugal e Castela,
motivando frequentes queixas ao rei. Era comum os navios corsários portugueses
posicionarem-se na foz do Guadalquivir para atacar os navios mercantes espanhóis
assim que estes se faziam ao mar.
Os principais
ninhos de corsários portugueses eram Lagos, Tavira, Odemira, Lisboa, Buarcos e
Leça da Palmeira, mas Ceuta suplantaria todos eles na sua importância após a
sua conquista em 1415.
Lagos tinha uma posição estratégica para o controlo da navegação,
pela curta distância a que se encontra do Cabo de S. Vicente. Era a vila do
Infante D. Henrique, sua principal base e um verdadeiro ninho de corsários e
piratas.
Em 1444,
Lançarote de Freitas, almoxarife da Vila de Lagos, funda a Parceria de Lagos,
uma “sociedade de exploração e
comércio organizada para resgate e descobrimentos da costa da Guiné”, que
irá congregar os principais corsários de Lagos, como Soeiro da Costa, Gil
Eanes, Vicente Dias e Estêvão Afonso, entre outros, promovendo expedições à
costa Ocidental de África para captura de escravos.
A primeira
expedição parte nesse mesmo ano de 1444 e é constituída por 6 navios,
comandados por Lançarote de Freitas, Gil Eanes, Estêvão Afonso, Rodrigo Alvares
e João Dias, capturando 235 berberes e negros nos bancos de Arguim, na costa da
Mauritânia. A sua venda num terreiro junto às Portas da Vila em Lagos foi
descrita por Gomes Eanes de Zurara na sua Crónica da Guiné:
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As Praças portuguesas e as principais corsárias Norte-africanas na costa de Marrocos |
“Uns tinham as caras baixas, e os rostos lavados com lágrimas, olhando
uns contra os outros; outros estavam gemendo muito dolorosamente, esguardando a
altura dos céus, firmando os olhos neles, bradando altamente, como se pedissem
socorro ao pai da natureza; outros feriam seu rosto com suas palmas,
lançando-se estendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em
maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quais posto que as
palavras da linguajem aos nossos não pudesse ser entendida, bem correspondia ao
grau de sua tristeza (…) as mães apertavam os outros filhos nos braços, e
lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas
carnes, para lhe não serem tirados! (…) O Infante estava ali em cima de um
poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês, como homem
que de sua parte queria fazer pequeno tesouro”.
Nos dois anos que se seguiram partiram mais
expedições de Lagos com destino a Arguim, trazendo escravos. O volume do
tráfico negreiro era tal, estimado em 700 a 800 escravos traficados por ano,
que foi fundada uma feitoria em Arguim, onde se trocavam trigo, tecidos e
cavalos por escravos e ouro, e que originou a criação em Lagos da Casa de
Arguim e da Casa da Guiné para gerir o negócio.
O rei tinha os
seus próprios corsários, os “corsário del rei”. Os infantes D.
Henrique, D. Fernando, D. Pedro e D. Duarte tinham todos corsários ao seu
serviço, mas o infante D. Henrique era de longe o grande promotor dos corsários
de Portugal. Era D. Henrique que promovia e autorizava as expedições corsárias
e o tráfico de escravos, e sobretudo que lucrava pessoalmente com o negócio, já
que era detentor do seu monopólio.
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Carta do Algarve de Alexandre Massey, 1621 |
As condições dos contratos celebrados entre o Infante e os particulares impunham que “se o particular armasse uma caravela à sua custa, e a carregasse de mercadoria, teria de pagar ao Infante um quarto da carga importada de África”, mas “se o Infante armasse a caravela e o particular a abastecesse de mercadoria, o Infante receberia metade da carga de retorno”.
Para além da casa real, a nobreza também promovia o corso como um investimento lucrativo e uma forma de afirmar o seu poder e influências. Nobres como Álvaro de Castro, conde de Monsanto, ou Sancho de Noronha, Conde de Odemira, eram proprietários de navios corsários, pagando o correspondente tributo à casa real. O próprio clero participava neste negócio, como atesta o facto de D. Álvaro Afonso, bispo de Silves e Évora, chanceler-mor do infante D. Pedro, ter navios no corso. De entre a extensa lista de corsários portugueses destacam-se figuras como Bartolomeu Dias, João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira, Vasco Anes de Corte Real, Álvaro Fernandes Palenço, Álvaro Mendes de Cerveira ou Pedro Vaz de Castelo Branco.
As Ordens Militares de Cristo, Santiago e Avis também estiveram envolvidas na guerra do corso. Não foi estranho a esta situação o facto do Infante D. Henrique ter sido administrador da Ordem de Cristo até 1460 e D. Fernando da Ordem de Santiago. A Ordem de Avis foi particularmente activa no Mediterrâneo, onde se destacaram os corsários Soeiro da Costa, alcaide de Lagos, Rodrigo Sampaio, Diogo de Azambuja e Pedro de Ataíde o inferno, o mais famoso de todos os corsários portugueses, que ficou na história pelo terror que incutia nos mares por onde navegava.
O estabelecimento das Praças-fortes portuguesas em Marrocos foi em parte motivado pela actividade dos corsários Norte-africanos, já que a sua relação com as cidades da costa de Marrocos sempre foi evidente. Para além disso, a presença portuguesa no local levaria a guerra do corso para o território inimigo, abrindo outras perspectivas em termos de estratégia. A conquista de Ceuta de 1415 é assim determinante na luta de Portugal contra a pirataria Norte-africana.
Conforme refere David Lopes, ”Esses ladrões do mar, no Mediterrâneo como no Estreito e no Atlântico, ou ao longo das suas costas, salteavam os navios e as populações do litoral, roubando uns e outros, cativando as pessoas, ou matando-as, se resistiam. Quando a nossa gente entrou em Ceuta, encontrou lá dois sinos que os corsários tinham tomado em Lagos, e foram colocados na antiga mesquita convertida em igreja.”

David Lopes
refere também as inegáveis vantagens que as praças de Marrocos prestaram na
luta contra o corso. “Desde
então Ceuta foi padrasto dos mouros. A cavaleiro do Mediterrâneo e do Estreito,
vigiava essa navegação inimiga, e impedia-a muitas vezes, ao mesmo tempo que
protegia a outra navegação cristã entre o Mediterrâneo e o Atlântico. O
benefício geral que daí resultava era muito grande e Portugal prestava um
inestimável serviço à navegação europeia.”
Ceuta transforma-se rapidamente na maior base
de corsários portugueses, suplantando a importância de Lagos.
A conquista de
Ceuta alarga o âmbito das acções de Portugal, que passa a controlar a navegação
no Atlântico.
Nota: Texto referente à
“História de Portugal e Marrocos” de Frederico Mendes Paula.
Composição, arranjo e colocação de imagens / fotografias por V.
Oliveira
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