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"Oporto from the Monte d'Arabida", 1829 |
Da Torre da Marca ao Pavilhão Rosa Mota
Breve história do Palácio de Cristal, desde o campo da Torre da Marca – antes mesmo de ter sido erguido o palácio projetado pelo inglês Thomas Dillen Jones – até à sua demolição e substituição pelo Pavilhão dos Desportos, mais tarde Pavilhão Rosa Mota e hoje Super Bock Arena.
Em tempos recuados, num dos mais aprazíveis promontórios debruçados sobre o rio Douro, a poente do núcleo delimitado pelas muralhas fernandinas, encontrava-se um alto pinheiro que servia de orientação para os barcos que entravam na barra do Douro. Um dia, a velha árvore acabou por cair e, em sua substituição, o rei D. João III mandou erigir uma torre em pedra. Ficou conhecida como Torre da Marca, aparecendo representada em numerosas gravuras antigas. A torre acabaria também por ser destruída em 1832, aquando do Cerco do Porto.
Em meados do século XIX vivia-se por toda a Europa um furor de desenvolvimento industrial e tecnológico. Em 1851, na capital da próspera Inglaterra, abria as portas a Exposição Universal. Para acolher o importante certame, nos jardins do Hyde Park foi erguido um grandioso edifício de vidro e ferro, o Crystal Palace. De linhas arrojadas e inéditas, o edifício fora concebido por Joseph Paxton, um engenhoso construtor de estufas, e edificado no tempo record de seis meses. Com 70 mil metros quadrados de área coberta, o edifício foi o primeiro exemplo de prefabricação total. Findo o objetivo para o qual foi construído, o Crystal Palace foi vendido e pôde ser desmontado peça por peça e reconstruído noutro local.
De entre os milhares de visitantes que, de todo o mundo, acorreram à exposição de 1851 encontravam-se alguns portuenses, na mente dos quais começou a germinar o sonho de um dia poder realizar algo de semelhante em Portugal. No entanto, à época, as finanças nacionais estavam depauperadas, a agricultura tradicional imperava e a indústria era insipiente.
Apesar do enquadramento desfavorável, em 1854 é fundada no Porto a Sociedade Agrícola que, três anos depois, organiza uma exposição, precisamente no campo da Torre da Marca, então o local onde se iniciavam os subúrbios semirrurais do Porto. Nesse mesmo ano, também a Associação Industrial Portuense (hoje chamada Associação Empresarial de Portugal) organizava uma exposição no Asilo de Mendicidade, nas Fontainhas. Em 1861, a mesma associação levou a cabo a Primeira Exposição Industrial Portuguesa, desta feita no Palácio da Bolsa, ainda em construção.
Perante o estímulo que estes certames provocaram na economia da cidade e da região e o interesse que despertaram no grande público, foi criada a Sociedade do Palácio de Cristal Portuense, com o objetivo de "construir um palácio destinado a exposições agrícolas, industriais e artísticas". Tal edifício seria erguido no campo da Torre da Marca.
O projeto do palácio ficou a cargo do arquiteto inglês Thomas Dillen Jones, tendo por modelo o Crystal Palace londrino. No entanto, houve que fazer cedências ao gosto portuense. Aos espaços abertos de colunas e abóbodas de ferro e vidro foi justaposta uma ampla fachada granítica com dois monumentais torreões, fazendo jus à preferência da burguesia portuense por esta pedra, tão típica da cidade e da região. Esta customização, digamos assim, teve o grande inconveniente de fixar o palácio ao local onde foi construído. Ao contrário do original londrino, o pavilhão portuense perdeu a capacidade de poder ser facilmente desmontado e erguido noutro local, caso tal viesse a ser necessário.
O edifício do Palácio de Cristal portuense, com as suas três naves, totalizava uma área coberta de 7.900 metros quadrados. Com uma largura total de quarenta metros, a nave central tinha uma abóboda em vidro com dezanove metros de altura e 107 de profundidade. De menor volume, as naves laterais ficavam-se pelos 8,3 metros de largura e 94 de comprimento. Na fachada, a inscrição “Progredior” anunciava os novos tempos de progresso que o Palácio de Cristal encarnava.
Vencidos todos os contratempos – mormente a crónica falta de verbas –, a 18 de setembro de 1865, teve lugar a abertura oficial da Exposição Internacional Portuguesa e, com ela, a inauguração do palácio. Presidida pelo rei D. Luís, a cerimónia revestiu-se de uma solenidade e esplendor pouco habituais em terras portuenses. Para além da família real, integravam o numeroso séquito vários ministros e autoridades nacionais, bem como todas as figuras relevantes da economia, da política e da sociedade nortenhas. A assistir, uma multidão compacta de populares.
A exposição atraiu 4.300 expositores de trinta nacionalidades, estando dividida em quatro secções: matérias-primas, maquinaria, produtos manufaturados e belas-artes. Portugal jamais havia sido palco de tamanho empreendimento! Durante o mês e meio em que esteve aberta ao público, a exposição atraiu mais de 60 mil pessoas, número impressionante se atendermos a que a população do Porto não chegava, na época, aos 87 mil habitantes.
Após a exposição de 1865, o Palácio de Cristal foi palco de muitos outros certames, a par de iniciativas desportivas, culturais e recreativas. No interior da nave central, ao fundo, foi instalado um famoso órgão, tido por muitos como um dos melhores do mundo. Junto da nave lateral, para nascente, abriu o Teatro Gil Vicente, com capacidade para mil espectadores e, na extremidade oposta, as estufas com plantas tropicais. Nas naves laterais encontravam-se serviços de apoio, tais como o gabinete de leitura, os bazares e as salas de exposição e venda de belas artes. Do lado oeste, sobre os jardins e o lago, encontrava-se um requintado restaurante.
Em volta do palácio, o espaço era igualmente muito acolhedor e rapidamente se tornou num autêntico local de desfile da fina flor da sociedade portuense. O compacto arvoredo convidava ao passeio e à tranquilidade.
No coreto da conhecida avenida das Tílias, todos os domingos e feriados havia música por conta de bandas regimentais. Mais à frente, a concha, ainda existente, apresentava peças de teatro e recitais. Ao fundo da avenida, à direita, havia um chalé alpino, de onde se apreciavam desafogadas vistas sobre a foz do rio e o mar. Nas proximidades estavam as coleções zoológicas, a aldeia dos macacos e a gaiola das águias.
A par da Torre dos Clérigos e do Palácio da Bolsa, o Palácio de Cristal passou a integrar o restrito grupo das grandes atrações turísticas, arquitetónicas e sociais do Porto. Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, António Nobre, Júlio Brandão, entre outros artistas e intelectuais, eram visitas assíduas do palácio. O Palácio de Cristal e os seus jardins representam o ponto alto do Porto romântico oitocentista.
Nas primeiras décadas do século XX, a deficitária exploração do palácio começou a comprometer a sua boa manutenção e o edifício foi revelando sinais crescentes de degradação. Em 1933, a Câmara Municipal do Porto comprou o recinto por dois mil contos (dez mil euros), com o objetivo de aí realizar a Exposição Colonial Portuguesa no ano seguinte.
Como sinal de afirmação do Estado Novo e da política colonial, nos jardins do palácio foram erguidas réplicas idealizadas de aldeias autóctones das colónias portuguesas de então, animadas por nativos trazidos propositadamente para o efeito. Nesse ano de 1934, milhares de portuenses acorreram ao palácio para admirar os indígenas, com o mesmo espanto que sentiam perante animais exóticos num jardim zoológico. Este foi o último grande evento realizado no palácio.
Em 1941, o violento ciclone que assolou a região agravou seriamente o estado de ruína em que já se encontrava a cobertura do edifício. A persistente exiguidade do orçamento camarário foi adiando sucessivamente reparações profundas, que tanto tinham de urgentes como de dispendiosas.
Sob a presidência do coronel Licínio Presa, por deliberação camarária de dezembro de 1951, foi decidido demolir o Palácio de Cristal. O pretexto foi a necessidade urgente de se construir um recinto moderno para acolher o campeonato mundial de hóquei em patins a realizar no ano seguinte. Desta forma inglória, pôs-se fim ao Palácio de Cristal, símbolo ímpar da arquitetura do ferro em Portugal e que tão fortemente marcou a vida económica, social e cultural da cidade.
A demolição avançou imediatamente, começando-se a construção do novo pavilhão – um projeto do arquiteto Carlos Loureiro. A 10 de outubro de 1952, ainda sem que a cúpula estivesse terminada, foi inaugurado o controverso Pavilhão dos Desportos e os jogos do campeonato de hóquei em patins puderam realizar-se, acabando Portugal por se sagrar campeão do mundo da modalidade. Pela quinta vez.
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Com a cúpula por fechar, cobertores protegem o ringue da chuva, nas vésperas do Campeonato do Mundo, 1952 |
Ao longo dos anos, o Pavilhão dos Desportos foi acolhendo, não apenas jogos de diversas modalidades, como também espetáculos musicais, de teatro e de circo, congressos e exposições. Neste local realizaram-se as feiras industriais organizadas pela Associação Industrial Portuense até à construção da Exponor, em Leça da Palmeira, em 1987. Em 1991, o pavilhão foi rebatizado, em homenagem à maratonista e campeã olímpica portuense Rosa Mota. Na sequência de um contrato de cedência da exploração a privados, em 2019 o espaço viu o seu nome alterado para Super Bock Arena, designação que manterá durante os vinte anos de duração da concessão.
Apesar de conviverem com ele há setenta anos, ainda hoje muitos portuenses continuam a não ver com bons olhos este edifício de betão em forma de calote esférica. Para muitos, a demolição do antigo Palácio de Cristal foi um atentado irreparável contra o património artístico da cidade e do país. A grande maioria dos portuenses de hoje já não chegou a conhecer o antigo palácio, revivendo-o apenas através dos registos fotográficos existentes.
Para saber mais:
- ALVES, J. (1994). "As exposições industriais do Porto nos meados do século XIX". O Tripeiro. 7.ª série, ano XIII, n.º 6, junho 1994, pp. 171-176.
- ALVES, J. (2010). O progresso material: Da regeneração aos sinais de crise. Matosinhos: QuidNovi.
- CARDOSO, A. et al. (1994). Porto 1865: Uma exposição. Lisboa: Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa.
- CRUZ, P. (1997). Porto: A arte do ferro. Porto: ASA
- RIBEIRO, A. (1965). "No centenário da inauguração do antigo palácio de Cristal (1865-1965)". O Tripeiro, 6.ª série, ano V, n.º 9, setembro 1965, pp. 273-280.
- SAMODÃES, C. (1890). O Palacio de Crystal portuense: Breve esboço historico. Porto: Tipografia Central.
- SANTOS, J. C. (1989). O Palácio de Cristal e a arquitectura do ferro no Porto em meados do séc. XIX. Porto: Fundação Eng.º António de Almeida.
- SERÉN, M. C. (2001). A porta do meio. A Exposição Colonial de 1834. Fotografias de Domingos Alvão. Porto: Centro Português de Fotografia.
- SILVA, G. (2006). Porto: Caminhos e memórias. Cruz Quebrada: Casa das Letras.
- SILVA, G. (2012). Porto: Nos recantos do passado. Porto: Porto Editora.
- SOUSA, M. (2017). Porto d’honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros.
Manuel de Sousa
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