terça-feira, 10 de dezembro de 2019

NOSSA SENHORA DA LAPA - HISTÓRIAS DAS TERRAS DO DEMO


A Serra da Lapa, situa-se no coração das Terras do Demo, assim designadas por Aquilino Ribeiro, de lá natural, e que se estendem pelos Concelhos de Sernancelhe, Vila Nova de Paiva e Moimenta da Beira. 
Foram estas terras agrestes que serviram de cenário a algumas obras de referência do ilustre Escritor. 
Com efeito, alguns dos seus livros são como que auto-biográficos, iniciando-se no “Cinco Reis de Gente”, com narrativa que claramente reporta à sua meninice. 
Um dos livros de Aquilino em que, com humor fino e requintes de ironia, descreve com particular detalhe, o modo de viver das gentes e do clero do seu tempo, é “Andam Faunos pelos Bosques”. 
Dava-se o caso de que, pelas freguesias da zona, andavam seres estranhos, não se sabia se santos se belzebus, a atacar as donzelas casadoiras. Uma após outra, nos mais diversos lugares, eram surpreendidas, inesperadamente, após restolhada nos matos, por esse ser estranho, que, com a destreza dum gamo e a firmeza dum leão, as surpreendia e derrubava . Era fulminante. Num ápice, perdiam a inocência e resultavam inçadas. 
Os reverendos eram solicitados a exorcizarem o espírito mau, tarefa a que se votavam sem grande entusiasmo. E o facto é que, passados os meses da praxe, as raparigas pariam vigorosos rebentos. 
Os Padres de então, abandonados à solidão do múnus apostólico em terras magras e hostis, de gente sagaz mas pouco letrada, matavam o tempo no que o contexto lhes proporcionava. Eram bons comedores, amantes duma boa pinga, caçadores e faziam a sua perninha na política local. 
Não raro, que os Invernos eram frios, agasalhavam um aconchego feminino, sempre bem escolhido por entre as reses mais tenras e devotas do seu rebanho. 

Entretanto, filosofavam com profundidade sobre a natureza do espírito mau que por ali estava investindo. 
O Padre Moura Seco era, entre os seus pares, o que mais alvitrava sobre o assunto. Contou-lhes ter ouvido, em miúdo, de um amolador de facas e navalhas itinerante, a estranha história que acontecera num antigo convento da Tabosa, onde as freiras Bernardas foram sucessivamente acometidas do mesmo mal que amofinava as donzelas da Rua, do Guilheiro, de Quintela, da Vila da Ponte, do Carregal, de S. Joaninho, de Ariz\… 
O único homem que penetrava a clausura do Convento era o Confessor, que já há muito passara dos oitenta e nem escarranchar-se na mula já podia. Estava fora de causa. 
Foi tal o alarme e a aflição que, em desespero, a madre Abadessa, pediu a assistência do Prelado da Diocese, que, adrede, franqueou as portas do Cenóbio e decidiu examinar pessoalmente por que forma e em que medida, aquelas puras e santas mulheres resultavam, uma após outra, todas pejadas. 
Na presença da Abadessa, foi passada em revista toda a Comunidade. 
Perante o Prelado, decidido a, meticulosamente, examinar todos os pormenores, eram convidadas a despir toda a roupa, o que muitas faziam com inocente sobressalto. 
Citando o Padre Seco, …”o digno pastor foi rectificando troncos fecundos, destes que heroicamente se deram a Cristo, quando se podiam com mor proveito dar aos homens, troncos mirrados que, por se não poderem dar aos homens, se deram a Cristo, fresquinhos, escorreitos, de todos os calibres e para todos os gostos, com os órgãos postos no seu lugar, conforme as leis da natureza feminina…” 
Faltava apenas a Sóror Maria do Santo Lenho, por cuja integridade e pureza, a Madre Abadessa arriscaria o pescoço, por aquela “rosa pura de Alexandria”, “uma autêntica Santa Clara, uma pomba sem fel…” 
O enigma resultou desvendado quando, examinando as suas partes pudibundas, constataram, o Prelado e a Abadessa, que se tratava dum robusto rapagão, tão bem dotado que, a Abadessa espontaneamente confessou que, em desfavor da sua larga experiência, nunca tinha visto nada igual. 

Serve esta história pouco edificante à introdução do leitor no bíblico mundo dos pastores e das suas ovelhinhas: as santas mulheres, discípulas do “melífluo” S. Bernardo, mais não eram que as ovelhas puras em cujo redil se introduzira o lobo mau, feito Sóror Maria do Santo Lenho. 
Antes de ser Rei de Israel, David foi pastor. Diz-se que bem ágil, tanto que derrubou o gigante Filisteu, Golias. Sucedeu-lhe no trono, o Rei Salomão, que passou para a História pela sua proverbial sabedoria mas que não hesitou em mandar matar Adonias pelo atrevimento que este tivera ao pedir-lhe a mão de Abisag de Sunam, uma botijinha de água quente, a mais linda de todo o Israel, que, durante cinco anos, não conseguira aquecer mais que os pés do velho Rei David. 
Rodeado de uma multidão de esposas e concubinas e recebendo a visita da sumptuosa Rainha de Sabá, Salomão dedicou à sua esposa preferida, a jovem e fogosa Sulamite, versos de cândida beleza que vieram a integrar o “Cântico dos Cânticos”. 

“…Como és bela minha amada, 
Como és bela. 
Teus olhos são pombas, 
Teus lábios, favos de mel. 
Teus dentes, cordeiros tosquiados 
Quando sobem do banho. 
Teus cabelos, um bando de cabras 
Derramadas pelas colinas de Galaad… 
Tens o talhe das palmeiras 
E a fogosidade de uma potra 
Atrelada ao carro do Faraó…” 

As referências aos cordeiros, às ovelhas, abundam nos textos sagrados, como seres impolutos, desprovidos de qualquer maldade, sabendo sofrer, em silêncio, as maldades dos homens: -sicut ovis, ad occisionem ductus est et, dum male trataretur, non aperuit os suum… 
Estes privilégios dos Reis não se extinguiram com o passar dos tempos. Foi, entre nós, quase lendária, a paixão de D. João V pela Madre Paula, do Mosteiro Cisterciense de Odivelas , que por ele era visitada assiduamente.

Consta que o Rei, no seu afã de se santificar, não se limitava a usufruir dos favores da Madre Paula e visitava outras freiras mais novinhas, com conhecimento e cumplicidade de todo o Mosteiro. Alguém escreveu até que, quando “inaugurava” uma capitosa noviça, a Comunidade se mobilizava e, monitorizada pelos suaves vagidos que se derramavam para os corredores, a partir do monástico tálamo, estes eram feitos reverberar em melodiosas áreas de violinos. 
Recordemos que a realidade sociológica dos Mosteiros de então e os critérios de recrutamento das suas monjas, não tinham nada a ver com a realidade que hoje vivemos e é assim indevida qualquer abusiva extrapolação para os nossos dias. 

E… como havemos de chegar, desde aqui, à imponência da Igreja de Nossa Senhora da Lapa, no Porto? 
Em meados de 982, o general mouro, Almançor, invadiu a Península Ibérica, causando grande destruição e morticínio por onde passava. Só 16 anos depois, em 998, o Abade Beneditino de Cluny, Santo Odilão, haveria de estabelecer, intra-muros, o dia 2 de Novembro como de comemoração de todos os Fiéis Defuntos. 
Eram presa fácil das hordas de Almançor, as Irmãs dos numerosos conventos femininos que por cá havia. Diz a tradição que terão passado pela Lapa, algumas freirinhas, as poucas que tinham escapado à espada e demais sevícias dos soldados de Almançor, no mosteiro em que todas viviam. 
Dos poucos pertences que, na precipitada fuga, levaram consigo, constava uma imagem de Nossa Senhora que, à falta de melhor esconderijo, deixaram sob uma lapa, no sítio que é hoje o Santuário da Lapa, na Serra do mesmo nome, em Sernancelhe. 
Essa imagem terá sido encontrada por uma pastorinha, muda, de nome Joana, em 1498. 
A pastorinha terá sido miraculada, adquirindo a voz quando, aflita, gritou à Mãe, que não queimasse no lume da lareira, a imagem de Nossa Senhora que a progenitora julgava ser uma vulgar boneca e se propunha reduzir a cinzas. 
Nasceu assim a devoção à Senhora da Lapa, que, rapidamente se espalhou por todo o mundo que viria a ser português, desde a Índia ao Brasil, para não falar de todo o Norte de Portugal onde proliferaram as “Lapinhas”. 
No miraculoso local do aparecimento da imagem, foi construído um templo que, no seu interior, conserva a lapa, uma pedra de grandes dimensões, sob a qual se venera a Senhora da Lapa. 
Teve, no seu apogeu, uma importância semelhante à que S. Tiago de Compostela teve na Galiza. 
Deram particular impulso à devoção à Senhora da Lapa, os Padres Jesuítas que ali fundaram um Colégio e lá permaneceram até que, em 1759, foram expulsos do País por D. José I, por protagonizarem ideias que ofendiam o seu poder absolutista suportado pelo sangrento e ignóbil Marquês de Pombal e também pela sua acção na colonização do Brasil que, sendo, globalmente meritória, teve que arrostar com a ira dos Bandeirantes, sedentos de mão de obra fácil e barata que encontravam nas Missões dos Jesuítas.. 
Aquilino Ribeiro, foi filho do Pároco do Carregal, não muito longe do Santuário da Senhora da Lapa. 
Foi no Colégio da Lapa que estudou, após os estudos primários. Ocupou o quarto com o número 33. 
Ali, muito perto da nascente do Vouga, acompanhou a vida do Santuário e, sob jurisdição dos Padres que lá ensinavam, participou em longuíssimas novenas. 
Tudo isso ele descreve no seu livro “Uma Luz ao Longe”. 
De lá partiu para o Colégio de Lamego, também de Padres, antes de rumar a Coimbra. Escreveu, inspirado nessa fase da sua vida, a “Via Sinuosa”. 
Com a saída dos Jesuítas, esmoreceu o antigo esplendor cultural da Lapa. São visíveis, entretanto, sinais do brilho antigo com uma ampla avenida que se desenvolve a partir do largo fronteiro ao Santuário e onde se mantém um comércio residual de produtos locais com relevo para o afamado pão da Lapa. 
O antigo Colégio está transformado em hospedaria de apoio aos peregrinos que ali vão fazer as suas novenas e há uma grande festa a 15 de Agosto de cada ano. Todas as estradas de acesso estão bem cuidadas e foi construído um enorme parque viário para os carros e autocarros que ali afluem. 
A dinamização do culto a Nossa Senhora da Lapa, no Porto, havia de ocorrer após a chegada a Portugal do Padre Ângelo Ribeiro Sequeira, vindo de S. Paulo, no Brasil. 
Segundo os dados biográficos que se conhecem, começou a sua instrução com os Jesuítas e viria a ser um advogado de renome e um homem rico. 
Terá sido um incidente protagonizado por um Paulista descontente por ter perdido uma demanda em que Ângelo Sequeira tinha patrocinado a parte contrária, que determinou uma mudança radical da sua vida. 
Tendo sido esbofeteado em público pelo demandante descontente, fez disso ponto de reflexão para reorientar a sua vida. E foi assim que decidiu desfazer-se de todos os seus bens materiais e rumar, em missão evangélica, para o nosso País. 
No Porto, iniciou uma campanha de missionação que culminou com a criação da Irmandade da Senhora da Lapa e a construção, durante longo tempo, da Igreja da Lapa, dispondo ainda de um Hospital, Cemitério e, durante alguns anos, dum Colégio, onde estudaram nomes ilustres como Eça, Ramalho e Ricardo Jorge. 
Desde há décadas que a Igreja da Lapa se distingue pelo prestígio, a acção e a palavra de quem a dirige. 
Adquiriu foros de excelência, o Coro Polifónico que ali se formou. 
Foi, em 1995, de fabrico da firma alemã George Jang, ali instalado um órgão de tubos que é o maior órgão sinfónico português em funcionamento. 

Aquele templo constituiu-se, interessa dizê-lo, num polo de irradiação da cultura musical litúrgica para todo o Norte de Portugal e a ele se ligaram pessoas dum extraordinário dinamismo. 
Esta matéria está profusamente documentada na Internet pelo que me dispenso de ir mais além. Tão só regredir até à pastorinha das Terras do Demo e reflectir em como são insondáveis os desígnios do Altíssimo. 
E… não se pode pensar na Igreja da Lapa, no Porto, sem recordar que se encontra ali depositado o coração do primeiro Imperador do Brasil, D.Pedro IV de Portugal. 
Foram tempos conturbados os das invasões francesas com a retirada da Família Real portuguesa para o Brasil. Há um livro, dum autor de língua inglesa, em que se relatam os episódios mais picarescos da permanência da Corte no Brasil, as caramunhas da Rainha D. Carlota Joaquina, o regresso apressado de D. João VI a Lisboa e a proclamação da Independência do Brasil, junto às margens da Ribeira do Ipiranga, com o grito que levou o mesmo nome e que D. Pedro terá proferido, depois de se ter aliviado atrás dum arbusto, dum impertinente desarranjo intestinal. Foi perto do local donde partiu Ângelo Sequeira. 
São conhecidos os episódios sangrentos que opuseram os dois irmãos (D. Pedro e D. Miguel) desavindos. 
O Porto foi cercado durante cerca de um ano pelas tropas Miguelistas e, no final, D. Pedro venceu –protagonizava a causa dos Liberais. 
E à vitória de D. Pedro sempre se associou a vitória que foi a libertação do Porto. 
É, entretanto, questionável a ideia de colocar o coração de D. Pedro, qual relíquia de Santo, num templo de tanto prestígio. 
D. Pedro deu até provas de um certo estouvamento na sua vida pessoal e com decisões que prejudicaram de forma irreversível o Património cultural e religioso do País: foi ele que expulsou de Portugal, as Ordens Religiosas. 
Só entendo a permanência do seu coração, na Lapa, pela ilimitada generosidade do Povo e da Igreja Portuenses. Se bem que também o diabo se representa nos espaços sagrados de culto cristão. 
D. Pedro esteve longe de ser um diabo: foi um generoso e bom malandro. 
Quem ousa contestar que a sua víscera, representando o seu amor e gratidão ao Povo do Porto, tenha honras de altar no templo da Lapa? 
Ninguém. 
E porquê? 
Porque, apesar de ser comummente aceite que qualquer palerma que se queira dar ares de evoluído e inteligente, se proclame republicano e laico, a verdade é que, bem lá no fundo… Rei é Rei. 
E quantas donzelas, se não derreteriam todas ao beijar um qualquer sapo repugnante desde que, nas suas tontinhas cabeças, se acomodasse a ideia de que, por força do apaixonado ósculo, ele haveria de virar Príncipe? 
Veneremos, pois, a memória de D. Pedro e dos que por ele morreram, curvando-nos respeitosamente junto ao sarcófago com a sua relíquia. Calha bem que seja o coração – ele foi notável por outros órgãos mais conformes à irreverência desta história. 

PS: Para este relato ligeiro da história da Igreja da Lapa, sem o rigor que os académicos exigem, com alguma brejeirice, indispensável para que o leitor não faça zapping, socorri-me de alguma informação pessoal, das ideias e algumas palavras da obra de Aquilino e dum pequeno romance de Bento da Cruz, que este ano (2015) nos deixou.

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