terça-feira, 6 de junho de 2023

MILREU, SONHO RURAL ROMANO COM OS OLHOS POSTOS NO MAR


A uma dezena de quilómetros de Faro, uma recente intervenção de conservação e restauro no notável conjunto de mosaicos da villa romana de Milreu colocou a descoberto elementos que não eram observados há várias décadas, devolvendo ao sítio arqueológico todo o seu esplendor.
As primeiras referências a Milreu chegam-nos do século XVI através do humanista André de Resende. Este frade dominicano pensou ter encontrado em Milreu as ruínas da antiga cidade romana de Ossonoba, actual Faro, mas seria necessário aguardar vários séculos para ouvirmos falar de novo deste lugar na freguesia de Estoi.
As evidências arqueológicas colocam as origens de Milreu no século I d.C., acompanhando a expansão económica da província da Lusitânia.
Milreu enquadra-se no modelo de povoamento e de organização do território do Império Romano. Numa economia monetária em que as cidades eram os pólos do comércio, existiam inúmeras quintas agro-pecuárias estabelecidas na proximidade das principais vias de comunicação que abasteciam os centros urbanos. Esta rede bem estruturada permitiu que o império subsistisse por cerca de 500 anos. No modelo inicial destas villae, apelidadas de rústicas, os seus proprietários dividiam o tempo entre a cidade e o campo. Dessa forma, as construções consagradas ao uso privado eram normalmente menos sumptuosas.

A Villa era uma fonte de rendimento para as elites urbanas, servindo ao mesmo tempo de espaço de lazer, ou de otium na designação latina. Já na Antiguidade clássica, o conceito de casa de fim-de-semana ou férias era popular entre as classes mais abastadas. Mas a ideia da villa como expressão do modelo de cidade no campo é algo que só mais tarde se consolidou com a lenta transformação das estruturas do Império.
Regressando a finais do século XIX e imaginemos a seguinte cena. Com todo o cuidado, munido de uma escova de cerdas macias, um arqueólogo retira delicadamente a terra daquilo que parece ser o que resta de um busto de mármore com as feições de uma mulher: não o sabe ainda, mas a mulher de Milreu é a figura que marcará o imaginário desta opulenta villa pelo seu semblante e penteado singular.


É surpreendente que num período tão conturbado como foi o século IV se tenham edificado obras de carácter tão sumptuoso. O mais extraordinário é que as oficinas da região da Tunísia continuavam a executar projectos de grande dimensão em regiões que já sentiam as incursões dos povos germânicos. Não é difícil imaginar os mestres artesãos do mosaico a deslocaram-se de terra em terra com os seus catálogos apresentando os mais variados modelos. “Mesmo no período em que o Império já dava sinais acentuados de perturbação, o Mediterrâneo continuou a ser uma estrada de comércio e contactos”, lembra João Pedro Bernardes.


A conservação do edifício de culto até aos nossos dias seguiu o percurso normal das estruturas do passado. Por norma, o abandono total conduz apenas ao aproveitamento dos materiais para outras construções, mas existem por vezes acasos felizes, como em Milreu. Ali, o uso foi sendo alterado ao longo do tempo, preservando desta forma a sua memória. De espaço para cultos pagãos no século IV, evoluiu para devoção paleocristã no século V, como ficou atestado pela descoberta de um baptistério e de uma necrópole.


Com a ocupação muçulmana no século VIII, o lugar seguiu os caminhos da fé islâmica. A escrita em caracteres árabes numa antiga coluna da época romana é o elemento de prova. As religiões têm uma capacidade única de se impor, capturando lentamente os velhos ritos e conduzindo-os para o modelo vigente. Os fenómenos naturais também contribuíram para perceber a evolução histórica do templo. “Sabemos da existência de um terramoto no século X que derrubou a cobertura do ninfeu e selou o espaço como uma cápsula do tempo”, diz João Pedro Bernardes. “Os materiais arqueológicos ali recolhidos em escavações recentes estavam depositados por ordem cronológica”, conclui.
Desde as suas origens, Milreu foi aquilo que se pode apelidar de “casa agrícola”. Ali, além do gado, cultivava-se a vinha e a oliveira para produção de vinho e azeite para exportação. Os antigos dólios (contentores) para guardar o azeite não estão infelizmente à vista, apesar de se saber o local exacto das mesmas e de já terem sido objecto de estudo por Felix Teichner, discípulo de Theodor Hauschild. “A falta de recursos impediu-nos até agora de musealizá-las”, diz João Pedro Bernardes. “Apesar da proximidade do mar, não existem evidências de que em Milreu tenha existido produção de preparados de peixe como noutros espaços similares da região algarvia”, remata o investigador.


As provas do carácter agrícola de Milreu estão felizmente em grande parte ao alcance do olhar de quem visita o sítio arqueológico. O monte medieval que se estabeleceu no local e a casa rural edificada no século XVI, com alterações no século XVIII, estão entre os melhores exemplos de arquitectura rural da época moderna em território nacional. Esta construção conservou involuntariamente muitas das estruturas do período clássico. Deste modo, por baixo dos seus alicerces, estão hoje à vista um antigo lagar, divisões magnificamente decoradas com painéis de mosaico com motivos geométricos e com o pormenor de parte destes espaços serem aquecidos. Estes pormenores requintados estavam reservados apenas a uma pequena elite.
A forma como todos os seres aquáticos foram desenhados e implantados criava uma ilusão de óptica que, com o tanque cheio de água, fazia crer que os mesmos estavam em movimento. Apesar de o mergulho com escafandro autónomo estar ainda a quase dois milénios de distância, os titulares de Milreu tinham enorme fascínio pelo mar. O mosaico das ondas situado em frente da casa rural é outro exemplo de uma criação exuberante. Um simples olhar reconhece de imediato as cores esquecidas há muito e devolvidas pelo projecto de conservação e retirada dos líquenes que o cobriam em 2021.
A qualidade do trabalho da oficina norte-africana que o realizou deverá ter sido famosa na época, porque foi encontrado o mesmo tipo de decoração em escavações na antiga Augusta Emerita, actual Mérida, e numa villa na Galiza. Toda a villa foi projectada com a água como principal elemento cenográfico. A propriedade edificada em socalcos exibia fontes e repuxos para conferir um ambiente fresco numa região que já na época registaria verões bastante quentes. Sem qualquer esforço, podemos imaginar os proprietários a receberem os seus convidados para um dia de sonho nas suas termas privadas e um jantar na proximidade do peristilo (o pátio interior que rodeava toda a habitação suportado por colunas e tinha normalmente um tanque flanqueado por espécies arbustivas).


Para completar a decoração, os bustos dos imperadores Adriano e Galieno e de Júlia Agripina, mãe de Nero, eram exibidos com vaidade. Os bustos imperiais de Milreu foram descobertos em 1966, tendo sido classificados há poucos meses como tesouros nacionais. É provável que nunca venha a perceber-se a razão para a existência destas figuras em Milreu. As opiniões dividem-se entre os que defendem a proximidade dos senhores de Milreu às cúpulas do poder imperial e os que acreditam que estes abastados proprietários eram coleccionadores, seguindo uma tradição já em voga na época.
Os dados arqueológicos revelam-nos ainda relações profundas com o Mediterrâneo. As cerâmicas finas de importação norte-africana encontradas em Milreu perduraram muito para lá da existência do Império Romano. Uma pequena lucerna (candeia de azeite) descoberta por Felix Teichner com o monograma de Cristo, datada do século VI, é prova dessa continuidade. Os produtos romanos ou tardo-romanos de origem oriental e norte-africana só deixaram de circular no século VII com a expansão islâmica que culminou com a ocupação da Península Ibérica no século VIII. O mundo romano, que manteve ao longo da sua existência um Mediterrâneo unido entre as duas margens, daria então lugar a uma nova realidade que perdura até hoje, separando o Norte cristão do Sul muçulmano. Esses laços, que continuamos a tentar unir de novo tantos séculos depois, lembram a singularidade de Milreu como espaço de celebração de culturas.


Com uma luz alaranjada típica do final do dia, detemo-nos por momentos a olhar para o ninfeu, que por instantes parece ganhar vida, mesclando romanos, cristãos e muçulmanos.

Texto e fotografias de Hugo Marques
Resumo e reposição de fotos de Vítor Oliveira

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