Descobertas há 20 anos, as pinturas de Laas Geel, um dos exemplos de arte rupestre mais importantes do mundo, estão na vanguarda da extraordinária e inexplorada riqueza arqueológica da Somalilândia, uma região ainda no limbo.
Falta, porém, terminar um rito, o mais importante: o dos artistas, ou xamãs, que, decididos a honrar a chegada às suas vidas da vaca doméstica, ser divino e dócil que dá leite e carne e que mudou a vida dos seus donos, decoraram as paredes de cavidades com pigmentos extraídos de seiva de raízes, areia ou poeira de rochas. Não são pinturas decorativas, são venerações. Gestos de adoração para com os seus animais, registados na pedra. Os seus autores são pioneiros: os primeiros pastores-pintores do Corno de África.
Também são mensageiros de um momento histórico. Graças a essas pinturas, sabemos hoje que, há cerca de cinco mil anos, aqueles encontros periódicos no monte solitário, a menos de cem quilómetros de Hargeisa, a capital da Somalilândia – território semidesértico situado no Norte da Somália, autoproclamado independente em 1991 e reconhecido apenas por Taiwan – eram mais do que meras reuniões de pastores.
Aquela colina rochosa marca o início de uma nova era para o Corno de África: o momento em que a domesticação das vacas transformou opovos caçadores-recolectores em pastores.
As cerimónias antigas desapareceram há muito, mas delas surgiu um tesouro que permaneceu praticamente intacto. Com o passar dos séculos, o deserto secou os rios, os encontros de homenagem à vaca extinguiram-se e a montanha passou a chamar-se simplesmente Laas Geel, “poço para os camelos”, no idioma somali. As pinturas caíram no esquecimento durante cinco milénios… até quase anteontem. Há 20 anos, num achado próprio de outro século, uma equipa de arqueólogos franceses anunciou ao mundo a descoberta de um tesouro invulgar: Laas Geel, as pinturas rupestres mais importantes do Corno de África.
Distribuídas por 23 abrigos sob rocha, sobrevivem cerca de quinhentas figuras humanas, de animais e símbolos geométricos num estado de conservação excepcional.
Poucos metros acima da nossa cabeça, encontram-se espalhadas centenas de figuras de cores vivas, todas diferentes, algumas tão próximas que conseguimos tocar-lhes com os dedos: vacas com chifres gigantes, de riscas coloridas no pescoço ou no lombo, humanos em posição de adoração, cabras ou cães em redor… uma arte rica em pormenores que mistura traços realistas, abstractos e até simbólicos. Um festival pictórico com cinco mil anos de antiguidade que se abre diante de uma paisagem prodigiosa: um vasto deserto de rocha e arbustos que se estende para lá do horizonte. Nas encostas da montanha, adivinha-se a cicatriz de uedes sem nome, de rios hoje secos que só transportam água durante a época das chuvas.
É uma espécie de Capela Sistina dos nómadas do Neolítico. Só que na Capela Sistina entra-se num templo que nos prepara para o que se vai ver e aqui não. De repente, encontra-se uma montanha solitária e deparamos com pinturas maravilhosas.
Laas Geel é incrível, mas é apenas a jóia da coroa de um país rico em sítios excepcionais
Notas: Texto recolhido da autoria de Xavier Aldekoa com fotografias de Jordi Matas.
Preparação com pequenos arranjos de V. Oliveira
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